quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Pequena caixa de Pandora


Na soleira da porta
Largo um sem-número de indagações

Como chinelos velhos
Deixo que sejam esquecidos ao relento
Até perderem a forma que assusta

Num canto qualquer, as interrogações parecem quase inofensivas

***

É Noite de Ano Novo
Alaridos na rua, um cão que late longe
Como o saco de perguntas, este som também logo será engolido

As dúvidas murcham como pipocas frias
Que as crianças atiram umas às outras
enquanto suam o tempo nos pés velozes

As dúvidas perdem força
À semelhança de pequenos duendes
Engessados da cabeça aos pés
Inofensivos adornos de Natal, suspensos na árvore fora de época

***

Meia-noite.
Hora de passar pela soleira outra vez.
As visitas reúnem coisas, sapatos, presentes
E somem na noite

Os meus que fiquem ao relento!
Nada de tirá-los do lugar
Até que as dúvidas se dissolvam
como velhos papéis esquecidos

Sigo descalça. Nua.
Nem uma placenta para acomodar o corpo que nasce.
Meus pés não são de gesso.

Do outro lado da calçada,
Pequenos duendes atados com fios invisíveis.
Pelo menos até o próximo ano.
Até o próximo dilúvio na caixa de Pandora.

domingo, 12 de outubro de 2008

Entre pedras e balões


Como corrente de água que sabe por onde passa
deslizo por pedras pontiagudas

Minha pele é anfíbia
Não tenho medo dos atritos
O que me torturam são as dores logínquas
Que ainda expõem minhas vísceras ao teu silêncio

Este sim, assustador
Não por ele, que sei fluido.
Mas pela minha inabalável espera
Como se grandes pedras pudessem ser removidas
devolvendo a vida a cadáveres putrefatos

Trago teu rosto na mão
Como se fosse um balão de gás
Recuso-me a soltar a linha
Que o lançaria pelos ares

Feito um bólide
Feito um bólide

Ainda não consigo
Esvaziá-lo de vida
Espremê-lo com as minhas mãos
Como uvas descartadas

II

As pedras parecem oportunas
Preciso delas antes de soltar a linha
Para desfazer traços, apagar olhos
fazer da boca não mais que um risco pouco claro

Mais que necessárias, as pedras são urgentes
Para arrancar marcas tatuadas com cores vivas
E retirar o que meu olfato ainda captura
há quilômetros de distância,
onde os olhos sequer alcançam

As pedras entoam uma macabra canção de ninar
É preciso destruir o som do seu riso
Moer os dentes que insistem num sorriso
Sempre que o sono vem e meus sentidos vacilam

É preciso desfazer qualquer palavra
que ainda possa me pôr à espera

III

As pedras prometem escrever no meu corpo outra história
Quase celebro suas deformações
E agradeço os rasgos lancinantes
nesta pele anfíbia e cansada
Colonizada até os ossos

As pedras são quase doces
Quando prometem eliminar vestígios
que teu silêncio ainda propõe
Não espero mais pelo correio ou pelo tilintar do telefone
Só quero alfinetes para estourar a bolsa-balão

Para que sumas pelos ares
Ou escorras pelas pernas

Inspiro, expiro
E sinto este descolamento de mim
Como uma mecânica respiração

Sobre os ritos, a necessidade de morrer e a urgência de deixar passar


Os ritos são necessários.
Para celebrar as coisas que nascem.
Para chorar as que morrem.

Os ritos nunca deveriam ser abandonados
antes da sua conclusão. Vingam-se no corpo,
nele escrevendo toda a história do não-esquecido.

Quem queira entender a dor de uma alma,
que se debruce sobre as evidências do corpo que a abriga.
Lá estão as marcas ancestrais da palavra engolida.

A palavra nova anda em círculos;
só a não-palavra chega onde o terreno é desértico.

Se há uma solidariedade possível, é a do tato
a mais forte e humana das sensações.

Solidariedade que investe em desfazer, com dedos de Penélope,
os pressentimentos acumulados
em um corpo que o tempo colonizou.

sábado, 4 de outubro de 2008

Um poema sem respiração


Um poema tem urgências
Que meus espasmos não contém

Nascer é sua natureza

Como uvas ao sol
O poema escorre, quente, entre os dedos
Sempre que está maduro

Arrancá-lo fora da hora é perder sua pulsação

***

Assustou-se
Saiu das entranhas, mas não foi longe

O poema parou a meio do caminho

Como um estranho bebê
Recusou-se a sair

E eu deixei que morresse
Meu lindo poema
A um passo do oxigênio, preso no cordão

Preso por um fio
O pequeno feto-poema
já não respira

No lugar de uvas, uma seca noz
pende sem vida do meu corpo

***

Encontrei esta foto por acaso no google. A intenção de quem a postou não era a mesma. Mas a foto não podia ser mais oportuna.
Fonte: http://os-caes-ladram-e-a-caravana-passa.weblog.com.pt/arquivo/uvas.jpg

domingo, 28 de setembro de 2008

Bordas duras de um corpo ignorado


Outono. Folhas caem naturalmente das árvores.

***

Nenhuma violência ou artificialidade no ato de despregar-se.
Nenhum grito ou expressão de incômodo.

Caem como se o trajeto ao chão fosse uma evidência indolor.
Ou como se as folhas, tendo pálpebras,
se fechassem diante de um destino inevitável.

Sorrateira e harmoniosamente, as folhas gestam sua despedida.

Como quem borda uma colcha,
preparam o chão para seus frágeis corpos.
Quase inexistentes de tão leves
Mas suas bordas espetam com um fim muito claro:
dar um último e silente grito.

Um último e silente grito.
Antes de se perderem nos metálicos ruídos inumanos

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

ajeitando caminhos pra encostar no teu


"Eu descartava os dias
Em que não te vi
Como de um filme
A ação que não valeu
Rodava as horas pra trás
Roubava um pouquinho
E ajeitava o meu caminho
Pra encostar no teu (...)"


Chico Buarque. Valsa Brasileira

***

Atraso o relógio pra fazer os tempos coincidirem.

Em nome desta tarefa irrealizável,
distâncias enormes foram percorridas.

Não necessariamente geográficas. Distâncias humanas.
Que, às vezes, impedem dois corpos de se encontrarem no mesmo espaço.

A incomunicabilidade tem um efeito mais terrível
do que múltiplos oceanos de distância.

Surpreendo o sol. Salto noites. Não me refaço.
Morro a cada instante. E nem tenho sete vidas.

Não me arrependo.
É deste ato poético, ingênuo e quase inócuo que precisamos.
Para que a vida se reinstale nas veias.

Porque se a distância é sempre uma medida de afeto, o tempo é um hiato sempre elástico para aqueles que se alimentam de vacúolos a-temporais de amor.

***

A música está postada aqui. Basta clicar no título.

Sobre o tempo da delicadeza


"Pretendo descobrir
No último momento
Um tempo que refaz o que desfez
Que recolhe todo sentimento
E bota no corpo uma outra vez "

Chico Buarque. Todo o Sentimento

***

A tela é de Gustav Klimt.
Adam and Eve, que está na Österreichishe Galerie.
Eva inacabada. Sem as mãos e quase sem vida.

É preciso consumar o tempo de dois. O átimo de encontro.
Ou consumi-lo. Antes que se perca.
Antes que o tempo da delicadeza só permita rever
aquilo que um dia foi 'tudo' como se tivesse sido 'quase nada'
Última lente possível para visitar, à distância, uma história.

Antes de dizer adeus.

Adam and Eve bem poderia descrever este momento ambíguo.
Este segundo intenso que antecede as rupturas internas.
Onde o sentimento está todo - fruto maduro, imenso
Com todo o líquido que pode conter.
Para, então, dele verter todo o sentimento.
A um passo do trágico e irreversível tempo da delicadeza.


***

A música está no youtube. Basta clicar no título deste post.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Os flocos de neve não são eternos


Meu íntimo ao avesso.

E a cada hora que passa, minha alma congela. Dores como flocos de neve, misturando-se, anônimas, ao chão gelado e escorregadio da minha memória.

A imagem de um banco solitário ao fundo me consola. Em algum momento, as marcas vão desaparecer na neve, como se nunca tivessem existido.

Setembro vai passar. Setembro tem que passar.

Para que os olhos do meu corpo possam de novo ontemplar a paisagem.

E para que uma certeza ajude nos momentos estéreis: a de que flocos de neve não sobrevivem às incontáveis estações.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

O que a renda de bilro ensina sobre a vida cotidiana


Pequenos gestos. É com isso que se constrói uma história.

sábado, 16 de agosto de 2008

Amor Listrado


Assustadora a possibilidade de se estar, pra sempre, atrelado a alguém. Como Sylvia e Ted.

Um olhar. E tudo dito na escassez de palavras.

Palavras como peixes que se afogam no ar; a água pra sempre longe do seu alcance.

Colhidas no chão, feito folhas mortas, as palavras já não servem. Sem um corpo vivo, desmancham-se a um passo do sentido. Só que não se pode abortá-las.

Pontiagudas como lascas de maçã, arranham a garganta. Não descem. Vomitá-las também já não é possível.

Mas as palavras são astutas. Têm sabedoria de almoxarifado, como diria Adélia. Liquefazem-se nos olhos, retirando o verniz cotidiano das retinas.

Não importa que o tempo não volte. O amor será para sempre listrado.

***

Na foto, Sylvia Plath e Ted Hughes. Amor conturbado, perene, de retina.

Ode às virtudes espaço-temporais do amor


Esbarrei nele no aeroporto quase por acaso. Seu nome, Andre. Gorz por via austríaca. Se eu já não tivesse seu nome na cabeça e algumas de suas idéias críticas a mão, não teria atentado para o seu amor absoluto. Sinal de que a vida pública de uma pessoa nem sempre deixa traços muito evidentes da ebulição de sentimentos que dentro dela acontece.

Tinha então 84 anos e se suicidou junto com Dorine, que tinha uma doença degenerativa incurável.

As primeiras palavras do livro "Carta a D.", que encontrei por acaso nas prateleiras de uma livraria do Galeão, contorceram-se, dentro de mim, feito molas. Calaram dúvidas antigas sobre a durabilidade de um amor e trouxeram à tona uma certeza: é preciso não deixar para dizer no dia seguinte aquilo que faz sentido hoje.

Quando tudo parece feito de isopor e espuma nos relacionamentos contemporâneos, Gorz vem dizer que há um antidoto contra a efemeridade. Tão antigo quanto o mundo. Tão fértil quanto o chão em que hoje repousa:

"Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e continua bela, graciosa e desejável. Já faz cinqüenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher.

Eu só preciso lhe dizer de novo essas coisas simples antes de abordar questões que, não faz muito tempo, têm me atormentado. Por que você está tão pouco presente no que escrevi, se a nossa união é o que existe de mais importante na minha vida?"


E, voltando nas memórias, como quem busca retratos antigos, revela a gênese das raízes profundas de seu afeto:

"Compreendi com você que o prazer não é algo que se tome ou que se dê. Ele é um jeito de dar-se e de pedir ao outro a doação de si. Nós nos doamos inteiramente um ao outro.

Durante as semanas que se seguiram, nos reencontramos quase todas as noites. Você dividiu comigo o velho sofazinho afundado que me servia de cama. Ele tinha apenas sessenta centímetros de largura, e nós dormíamos apertados, um contra o outro. Além do sofazinho, meu quarto só tinha uma estante de livros feita de tábuas e tijolos, uma mesa enorme, atulhada de papéis, uma cadeira e um fogareiro. Você não se espantava com o meu cenobitismo. Também não me espantava que você o aceitasse".

Gorz, A. Carta a D.

***
Amor é quando a gente dorme junto num sofá de 60 cm. E acorda feliz por isto.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Uma questão de janelas

Clark et Pougnaud. Homenagem a Edward Hopper.

A Serenata

Uma noite de lua pálida e gerânios
ele viria com boca e mãos incríveis
tocar flauta no jardim.
Estou no começo do meu desespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.
Eu que rejeito e exprobo
o que não for natal como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão.
Quando ele vier, porque é certo que vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
- só a mulher entre as coisas envelhece.
De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?

Adélia Prado. A Serenata.

terça-feira, 1 de julho de 2008

Imagens interrrompidas


Retomo Sylvia - inspiração necessária para todos os que transformam vida em matéria-prima.

Um verso - e todo um mundo de sensações vem à superfície... Como se este mundo já estivesse ali, à espera de uma porta, pronto a irromper e inundar o espaço concreto e cartesiano das experiências corriqueiras.

Hoje reencontrei Mirror. E, quase por acaso, também, uma bela versão desta poesia para o português.

Sylvia fala com as dores, com o deambular do pensamento, com uma respiração própria que espasma as palavras. Não é fácil traduzi-la. É preciso estar atento ao seu pulso, às metáforas escolhidas, à sua história. À poesia que ela faz com seu corpo, com sua vida, com suas vísceras.
***
A versão em português é de Leila Silva. Um pequeno tesouro para os leitores de Plath.

***

MIRROR

I am silver and exact. I have no preconceptions.
Whatever I see, I swallow immediately.
Just as it is, unmisted by love or dislike
I am not cruel, only truthful –
The eye of a little god, four-cornered.
Most of the time I meditate on the opposite wall.
It is pink, with speckles. I have looked at it so long
I think it is a part of my heart. But it flickers.
Faces and darkness separate us over and over.

Now I am a lake. A woman bends over me.
Searching my reaches for what she really is.
Then she turns to those liars, the candles or the moon.
I see her back, and reflect it faithfully
She rewards me with tears and an agitation of hands.
I am important to her. She comes and goes.
Each morning it is her face that replaces the darkness.
In me she has drowned a young girl, and in me an old woman
Rises toward her day after day, like a terrible fish.

ESPELHO

Sou prata e exato. Eu não prejulgo.
O que vejo engulo de imediato
Tal qual é, sem me embaçar de amor ou desgosto.
Não sou cruel, tão somente veraz —
O olho de um deusinho, de quatro cantos.
O tempo todo reflito sobre a parede em frente.
É rosa, com manchas. Fitei-a tanto
Que a sinto parte de meu coração. Mas vacila.
Faces e escuridão insistem em nos separar.

Agora sou um lago. Uma mulher se inclina para mim,
Buscando em domínios meus o que realmente é.
Mas logo se volta para aqueles farsantes, o lustre e a lua.
Vejo suas costas e as reflito fielmente.
Ela me paga em choro e agitação de mãos.
Sou importante para ela. Ela vai e vem.
A cada manhã sua face reveza com a escuridão.
Em mim afogou uma menina, e em mim uma velha
Salta sobre ela dia após dia como um peixe horrendo.

Entretelas



Eleven A.M. (1926)
Edward Hopper

***

Hopper diz tudo. Sempre.


segunda-feira, 30 de junho de 2008

Afundando em palavras


Afundo em palavras
Elas distraem teu olho
Que já não sei se me percebe

O tempo é um hiato cruel
erguendo pontes levadiças
entre uma alma que vem e um corpo que espera

Mas sua alma virá mesmo?
Ou ficará comprimida em plástico multicor,
balão de gás que um barbante não segura?

Meus dedos já não alcançam.

A caminho do encontro, o corpo que espera
perdeu-se.
Naufragou em palavras,
até sumir no horizonte.
E, sem corpo, toda alma sente frio.

Palavras pra vestir esta alma. Rápido!
Palavras são necessárias antes que ela perca o pulso.
Uma alma nua não resiste muito tempo.
Mesmo a um olhar absorto como o teu.
***
Afundo em palavras.

quinta-feira, 26 de junho de 2008


"O amante está mais próximo dos deuses do que o amado uma vez que se encontra possesso de um deus"

Fedro em seu discurso no Banquete.

terça-feira, 24 de junho de 2008

Sobre os ritos, a necessidade de morrer e a urgência de deixar passar


Os ritos são necessários. Para celebrar as coisas que nascem. Para chorar as que morrem.

Os ritos nunca deveriam ser abandonados antes da sua conclusão. Vingam-se no corpo, nele escrevendo toda a história do não-esquecido.

Quem queira entender a dor de uma alma, que se debruce sobre as evidências do corpo que a abriga. Lá estão as marcas ancestrais da palavra engolida.

A palavra nova anda em círculos; só a não-palavra chega onde o terreno é desértico.

Se há uma solidariedade possível, é a do tato - a mais forte e humana das sensações. Solidariedade que investe em desfazer, com dedos de Penélope, os pressentimentos acumulados em um corpo que o tempo colonizou.

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Sobre a sorte e as escolhas que fazemos


Gabor: I´m going to tell you a story.
Long ago, I lived on the even side of a street, at the number 22.
I gazed at the houses across the street, thinking the people were happier,
their rooms were sunnier, their parties more fun.
But in fact their rooms were darker and smaller
and they, too, gazed across the street.
Because.. We always think that luck is what we don´t have.
I´II wait at the station.
If you don´t show, I´ll know you went.

Adèle: Went where?

Gabor: To see if the other side´s better.

La Fille sur le Pont, de Patrice Leconte.

***

A Mulher e o Atirador de Facas, nome com que ficou conhecido no Brasil, é daqueles filmes que marcam profundamente quem vê. Longe das receitas hollywoodianas de felicidade, La Fille sur le Pont fala sobre as oportunidades, sobre os encontros que podemos lamentavelmente não reconhecer e, sobretudo, sobre a sorte. Não a sorte que uns têm e outros não. Mas aquela que transita diante de nós e que nos convida a mudanças viscerais.

Por isso, Adèle e Gabor são, logo de início, representações dos desencontros cotidianos. Gabor vê Adèle em uma das pontes de Paris e não mede esforços para transformá-la no seu amuleto. Adèle segue Gabor sem grandes resistências. Ninguém a espera. E sem uma direção definida, qualquer caminho é melhor que a imobilidade.

Se Gabor é a irresponsabilidade medida, Adèle é a distração atenta. Atenta para que nenhuma história crie raízes. Talvez por isso ignore a seriedade indecisa de seu parceiro, a oscilar sempre entre embevecido e rigoroso. Gabor observa. Se embriaga com o que vê em Adèle - energia cercada de sorte por todos os lados.

O encontro entre Adèle e Gabor poderia nunca ter acontecido, não estivesse ela a ponto de se lançar no Sena e ele à procura das suicidas de plantão. Sinal de que a sorte pode sugir das situações mais extremas e inusitadas. Se por sorte entendemos, é claro, toda oportunidade de deter o tanto de morte injetado em nossas vidas.

La Fille sur le pont é, portanto, um convite às apostas que nunca fazemos. Fala de encontros improváveis, de trens e rotas inesperados. De desvios que, só em situações limites, imaginamos. Ou, trocando em miúdos, de amores impensáveis que teimam em ganhar forma - como plantas resistentes - no meio do asfalto.

***

Alguns trechos e traillers de La Fille sur le Pont:

Trailler 1:
http://www.youtube.com/watch?v=m0WwIqtkG3Y&feature=related

Trailer 2:
http://www.youtube.com/watch?v=KFvZsTX0fiU&feature=related

Trailer 3:
http://www.youtube.com/watch?v=o2yGEmXIfuk&feature=related

Trailer 4:
http://www.youtube.com/watch?v=5e4I02kLOaw&feature=related

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Conversando com espelhos


"Por mais amores que possamos ter tido, assim como cada um de nós só tem uma maneira de amar, através de tantas pessoas que quisemos tão apaixonadamente conhecer, não terá cada um de nós ainda assim conhecido senão a si mesmo?"

Grimaldi, Nicolas. O ciúme. Estudo sobre o Imaginário Proustiano

terça-feira, 3 de junho de 2008

O tempo da hesitação


"Vc viu as ruas? Há milhares delas.
Como se faz? Como se escolhe só uma?
Uma mulher...uma casa...um pedaço de terra só seu e uma paisagem pra olhar
Um jeito de morrer?
Todo aquele mundo sobre você. Nem sabe como termina (...)
Nasci neste navio.
E o mundo passou por mim. Mas apenas duas mil pessoas por vez (...)

Terra? A terra é um navio grande demais pra mim.
É uma mulher linda demais.
Uma viagem longa demais, um perfume forte demais.
É uma música que não sei fazer".

Mil Novecentos, em a Lenda do Pianista do Mar.

***

Diferente de My Blueberry Nights, A Lenda do Pianista do Mar não é um filme sobre rupturas. Remete a um momento anterior - talvez aquele instante preciso que divide o mundo em mousse de chocolate e torta de mirtilo. Falo aqui da reação mais primitiva e que envolve os encontros humanos: a hesitação.

Todo aquele que hesita conjuga um tempo próprio. O tempo que já foi antes mesmo de ter-se passado - como se estivesse sempre um passo à frente, espalhando sementes estéreis por onde anda. Há, portanto, uma razão para se hesitar: a certeza de chegar sempre tarde, não importa o quão cedo se esteja à porta das coisas. O passado está sempre desenhando, de seu lugar distante, os limites do futuro.

Na tela, Tim Roth está magnífico na pele do menino 1900, que nunca colocou os pés em terra firme. Impossível descrever a precisão do seu olhar, que sempre se congela diante de um ontem que já não se captura com exatidão e de um futuro que teima em envelhecer. É o olhar de quem já não espera. De quem percebe que só a hesitação pode deter o apetite do tempo.

Mas Novecento resiste a seu modo e esboça movimentos. Transborda, de modo silencioso e titubeante, os seus afetos. Tântalo moderno, revive o famoso mito grego - condenado a não sair de sua situação de fome e desejo, enquanto saborosos frutos o convidam a sair da hesitação. Na impossibilidade que se repete tantas vezes - espécie de pressentimento tatuado na alma - 1900 volta para sua terra, que nunca foi firme. Mundo feito de água, de chão inexistente, sempre a moldar-se pela expectativa de poder parar o tempo.

***

O trailler é belíssimo. Basta clicar no título.

My Blueberry Nights


Só quem viu, entende.
***

Para os que não viram, um clique rápido no título.

Para os que entenderam a mensagem, segue o link:

http://www.foriegnmoviesddl.com/2007/12/my-blueberry-nights-2007-kar-wai-wong.html

Uma despedida em conta-gotas


"How do you say goodbye to someone you can´t imagine living without?
I didn´t say goodbye.
I didn´t say anything.
I just walked away".


Lizzie, na despedida que nunca aconteceu. My blueberry Nights.

***

Terrível estado este em que se tem que dizer adeus a distância - distância essa que o coração simplesmente não assimilou.

sábado, 31 de maio de 2008

João Henriques há de me perdoar

Então.

Passeando pelos blogs num sábado ensolarado - o mundo lá fora acontecendo e eu aqui dentro pensando, pensando -, cheguei no João Henriques. Ou, melhor apresentado, no blog "O Crime de Laio".

Peço licença pra colocar aqui uma poesia que encontrei por lá, entre os papéis de João Henriques. Papel de 2007, perto do Natal, já um tanto amarelecido. Era uma poesia de um moço chamado João Dionísio. Bom, do João Dionísio eu falo mais tarde.

«Poema Muito Breve e Muito Raso»

Tenho saudades do chá maçã canela
E da tarte maçã canela
E da tarde em que seguiste os meus passos
E do teu não, também tenho saudades
E da tua respiração quente
Dos teus braços e abraços
Do brilho do teu sorriso
Dente por dente por dentro
E das tuas roupas azuis codificadas
E das tuas gargalhadas nuas
Do teu talento tolhido
Da tua toalha molhada

De nada e de tudo
Dos pés à cabeça,
Tenho saudades tuas,
Tenho saudades tuas
Arre! Tenho saudades tuas!


João M. Dionísio

***

Bom, minha gente. O 'arre' diz tudo.
"Meu coração é um balde despejado"

Pessoa, Fernando. Tabacaria.

***
E eu me pergunto se alguma coisa ainda fica.
E por que vielas, por que sulcos, por que frestas terão escorrido os afetos, os desejos, os amores.

A efervescência das palavras indigestas


As metáforas sempre foram minha companhia favorita.

Elas dizem o que quero dizer, sem deixar minha alma à mostra. Vulnerável, explícita. Sem uma gaze mínima que a proteja dos olhos dos curiosos.

Não sou Pessoa, que convida a ser inteiro no mínimo que faz. Ele, que nada exagera ou exclui. Sou amiga das hipérboles - lentes de aumento para examinar o mundo - e das metáforas, antídoto sutil para os excessos do dia anterior. Espécie de Sonrisal para os exageros da língua e dos olhos.

Também sou amante dos bons hipérbatos. Aqueles que embaralham as palavras, invertendo a ordem das coisas - como quebra-cabeça às avessas.

Estas são minhas ferramentas de dia e meus brinquedos de noite. A gaze que protege minhas vísceras, mas que também torna o suor delas a matéria-prima do dia seguinte.

São loucas!



"Vi teu braço acenando, entre as velas já soltas.

Dizem as velhas da praia que não voltas.

São loucas! São loucas!"


David Mourão-Ferreira


Entre hiatos de significado e a aposta na Terra Prometida


"E foi sobre estes bancos de solo ainda mal consolidados, mistura incerta de terra e água, que se apressaram a proliferar os mangues - esta estranha vegetação capaz de viver dentro de água salgada, numa terra frouxa, constantemente alagada. Agarrando-se com unhas e dentes a este solo para sobreviver, através de um sistema de raízes que são como garras fincadas profundamente no lodo e amparando-se, umas nas outras, para resistirem ao ímpeto das correntezas da maré e ao sopro dos ventos alíseos, que arrepiam sua cabeleira verde, os mangues foram pouco a pouco entrelaçando sua raízes e seus braços numa amorosa promiscuidade, e foram assim consolidando a sua vida e a vida do solo frouxo das coroas de lodo donde brotaram (...)

Os mangues vieram com os rios e, com os materiais por esses trazidos, foram os mangues laboriosamente construindo seu próprio solo, batendo-se em luta constante contra o mar. Vieram como se fossem tropas de ocupação e, em contato com o mar, edificaram silenciosamente e progressivamente esta imensa baixada aluvional hoje cortada por inúmeros braços de água dos rios e densamente povoada de homens e caranguejos (...)

Tendo os mangues realizado esta obra ciclópica, não admira que, hoje, sejam eles divinizados pelos habitantes desta área, embora não saibam os homens explicar como o mangue realiza este milagre de criar terra como se fosse um deus (...)"


Castro, Josué. A descoberta da Fome

***

As palavras de Josué fazem eco nos meus ouvidos... e eu penso sobre o sentido desta "estranha vegetação capaz de viver em terrra frouxa". Que habilidade proto-humana será essa, a de ser pra sempre interstício, suportando hiatos de significado, em busca da terra prometida?

Como será manter as garras fincadas no lodo, na certeza de que um dia a terra será firme e farta? Fato é que "em luta contra o mar"- evidência quase injusta do belo -, o mangue fétido e repulsivo confia que seu dia chega. Sobrevive aos ventos e à correnteza. Ondula com o movimento num mimetismo inteligente - e se mantém firme. No seu silêncio, o mangue se espraia pelos espaços mais isolados.

Confia que ali haverá terra. Basta aguardar. Estendendo seus improváveis e estranhos braços, o mangue acolhe. Abraça silenciosa e permanentemente. Até que a terra se deixa ficar. Primeiro confusa e frouxa. Depois confiante e desejosa do contato com estes dedos verdes e protetores. Feios e macios.

O mangue pede outros sentidos. Os olhos são cegos para entender. A terra, cansada de resistir, adormece para poder receber tais carícias. E o mangue, fértil de um jeito que só os dedos - e não olhos - podem saber, impregna a terra incerta com suas sementes verdes. Até que mais areia umedecida saia da boca deste braço esquecido de mar.

sexta-feira, 30 de maio de 2008

Nenúfares em tempos de proto-amores


Relações de afeto. Meu tema preferido.

Penso no modo como as pessoas entrelaçam suas histórias. Algumas por afinidade. Outras por atração. Mas muitas, realmente muitas, por sobrevivência.

A sobrevivência destila o afeto na corrente sanguínea. Cria nó górdio entre aqueles que ainda ontem eram estranhos. Nos torna anfíbios de sentimento: ávidos por líquidos que nos amoleçam; rígidos para o chão que nos recebe.

Ser anfíbio é ser sobrevivente. É também fazer-se invisível, camaleônico. É saber prender-se de outro modo onde o chão falta, onde os olhos enganam e de nada servem. Em terreno túrgido, outros sentidos são necessários. Onde os olhos encontram barro, afundam-se os pés. Onde a água parece certa, a terra brota teimosa e contra todas as evidências. Mangues e corações: equivalências de um mundo em permanente definição.

***

Demiurgo estranho, o mangue confere vida ao que parece morto, ao que é feito de pedaços inanimados. Faz sementes germinarem em terreno improvável, feio, fétido. Por isso é a melhor imagem para os encontros humanos - que por baixo da lama escura que é o passado-nosso-de-cada-dia, faz nascer novas histórias. Novos cordões de terra e de água.

Fios. Laços. Cabeleiras vegetais agitando-se sob um mundo líquido. Tão imprecisas que se confundem com a areia.

Entre a terra e a água, o encontro improvável. A água dissolvendo a terra e ameaçando sua estabilidade. A terra consumindo a água, encharcando-se dela, até que nada sobre. Dos dois, a lama. E com ela, o ser anfíbio. Aquele que sobrevive, que testemunha, que confere a medida e a fecundidade das coisas.

É na lama que o mundo toma forma.
Que o que é fértil toma corpo.
Que os amores amadurecem, improváveis. Como filamentos verdes em meio ao que antes parecia cimento.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Jeremy: Humm. It's like these pies and cakes. At the end of every night, the cheesecake and the apple pie are always completely gone. The peach cobbler and the chocolate mousse cake are nearly finished... but there's always a whole blueberry pie left untouched.

Elizabeth: So what's wrong with the blueberry pie?

Jeremy: There's nothing wrong with the blueberry pie. Just... people make other choices. You can't blame the blueberry pie, just... no one wants it.

Lizzie e Jeremy conversando sobre a torta de mirtilo. My Blueberry Nights.

terça-feira, 27 de maio de 2008


"Nunca tive boa memória, sempre sofri essa desvantagem: mas talvez seja um modo de recordar apenas o que se deve, talvez a maior coisa que nos aconteceu na vida, a que tem algum significado profundo, a que foi decisiva - para o bem e para o mal - nesta complexa, contraditória e inexplicável viagem rumo à morte que é a vida de toda pessoa. Por isso minha cultura é tão irregular, repleta de enormes lacunas, como que construída com restos de belíssimos templos cujos pedaços se encontram entre detritos e plantas selvagens. Os livros que li, as teorias que freqüentei, deveram-se a meus próprios tropeços com a realidade"

Sabato, Ernesto. Antes do Fim


***

A memória é uma invenção.

Não há realidade objetiva; apenas um passado que se reconstrói como lembrança à medida que o presente vai adicionando (ou depurando) significados. Não há memória intacta, assim como não há acontecimento cujas bordas não sejam comidas pelo tempo.

Náufragos de nossas próprias histórias, mergulhados até o pescoço em ressonâncias que sequer conhecemos, nos atamos a pequenos fragmentos de vida. Onde o dia não é azul, mas também nem é tão cinza. Ou, ao contrário, onde as nuvens estão grávidas de água, prontas para parir lamentos ancestrais. Não importa.

Cinza chumbo ainda é melhor que cor nenhuma. Melhor que uma vida que passe em brancas nuvens.

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Ao vencedor, os mirtilos



Mirtilo. Fruto exótico e pouco comum. Talvez por isso sobre na vitrine de tortas do bar de Jeremy, em Nova York. Toda diferença corre esse risc0: não agradar ao paladar e ser esquecida num canto, como se nunca tivesse existido.

Metáforas não faltam no novo filme de Wong Kar-Wai - My blueberry nights. E a sutileza e profundidade de algumas delas se comunicam com histórias que calamos ao longo da vida. Vale a pena comentar duas. As chaves amontoadas e a sempre ignorada torta de mirtilo.

O bar de Jeremy funciona como um curioso depósito de histórias de amor e ruptura, espaço sonoro e visual onde a alegria barulhenta dos encontros se mistura com o luto nem sempre silencioso dos casais que se separam. Espécie de linha divisória, o bar de Jeremy cela uma paz sempre ameaçada. Sentimentos contraditórios repousam nesta frágil linha de armistício que separa o desespero da aceitação. Claro que ambos, num cotovelo do caminho - como diria Graciliano Ramos - se confundem. Metáfora dos corações humanos, o bar de Blueberry Nights é um espaço com limites pouco definidos, em que convivem e se misturam promiscuamente lembrança e esquecimento. Insistência e abandono.

Nas mãos de Jeremy ficam chaves múltiplas de casas que ele nunca conheceu, a não ser pelo relato de seus itinerantes clientes - amantes anônimos que ora abandonam, ora são abandonados. Jeremy guarda as chaves, na intenção de não fechar portas que ainda poderiam ser abertas. No aquário em que são amontoadas, um sem-número de portas esquecidas, ainda por fechar.

É como se tomassem vida os personagens da quadrilha de Drummond... E assim "João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém". Para quem pensa que 'ninguém' é o fim da linha, a ruptura desta ciranda macabra, grande engano. 'Ninguém' é a peça fundamental neste circuito dos desencontros humanos. E tem um rosto - o daquele que deixará sobrar, todas as noites, a torta de mirtilo.

Representação dos que são sempre preteridos, a torta de mirtilo cimenta nos estômagos algumas indagações: e se na diferença costumeiramente ignorada estiver o bilhete premiado? E se o amor estiver distante das tortas de chocolate, esprimido entre mirtilos? E se formos nós a torta sempre esquecida? Haverá alguém que, por curiosidade ou pirraça, esteja disposto a deixar de lado os sabores previsíveis?

My blueberry nights é um filme sobre a solidão de quem foi esquecido. Sobre o abandono e a dor do amor que acaba sem deixar pistas, a não ser a incompreensível insistência - ora silenciosa, ora ensurdecedora - dos que ficaram no meio do caminho. Destroçados depois do fim de um amor, os personagens de Blueberry Nights sobrevivem como podem, perturbados pela presença fantasmática de um corpo sempre ausente.

Portas semi-abertas são como cicatrizes invisíveis - sempre torturam apesar da distância e do silêncio. Doem exatamente pq já não sabemos onde o fim começa. Com Jeremy desdobrimos que as chaves da casa - e do coração - podem ser mantidas num canto, sem que isto signifique que a passagem ainda esteja lá quando a oportunidade do encontro acontece. Quando o tempo é outro, o comum é que a porta dê em lugar nenhum. A um passo da soleira que separa o passado do presente, um abismo intransponível cresce. O familiar se torna estranho.

Perguntas são inevitáveis. Pq a porta se torna parede? Pq a parede pode brotar, sorrateira e concretamente, por detrás de cada porta aparente? Mais ainda, porque certas portas são estéreis e sempre fabricam paredes em vez de saídas?

Tortas e chaves são vasos comunicantes. Como Jeremy conta à Lizzie, algumas tortas são logo escolhidas e se acabam sem deixar rastro. Outras sobram pouco - um ou outro pedaço destinado aos famintos de plantão. Mas há as que são jogadas no lixo inteiras, dia após dia relegadas ao esquecimento. Pq os mirtilos sobram? Talvez pq sejam exóticos demais à primeira vista. Talvez pq sejam demasiado estranhos ao paladar. De todo modo, comunicam a solidão da Diferença - diferença que, sempre solitária, se põe a falar com espelhos.

Mas Jeremy insiste. Por isso expõe sua torta de mirtilo todas as noites à espera de um visitante curioso e nada trivial. No cotovelo do caminho, ele aposta que alguém ainda há de escolhê-la.

sexta-feira, 4 de abril de 2008


“Não entendo nada, falar consigo é o mesmo que ter caído num labirinto sem portas, Ora aí está uma excelente definição da vida, Você não é a vida, Sou muito menos complicada que ela."

Saramago. As Intermitências da Morte.

terça-feira, 1 de abril de 2008


Por quanto tempo pode-se esperar um amor?
Qual o prazo de validade de uma lembrança, de um olhar, de um punhado de palavras?
Haverá cerca capaz de proteger afetos e conservá-los ao alcance dos olhos?

***

Vi ontem "O Amor nos tempos do cólera". Já tinha esquecido como eu gosto de Gabriel García Márquez. Em meio ao irreal e ao fantástico, García Márquez consegue introduzir sentimentos quase concretos de tão pungentes.

Suas metáforas são de tal modo poderosas que ficam martelando na cabeça anos a fio. Como o saco de ossos carregado pra cima e pra baixo por Rebeca em Cem Anos de Solidão. Como o amor dolorido e paciente de Florentino Ariza, em O Amor nos Tempos do Cólera.

"Florentino Ariza não deixara de pensar nela um único instante desde que Fermina Daza o rechaçou sem apelação depois de uns amores contrariados, e haviam transcorrido desde então cinqüenta e um anos, nove meses e quatro dias. Não tivera que manter a conta do esquecimento fazendo uma risca diária nas paredes de um calabouço, porque não se havia passado um dia sem que acontecesse alguma coisa que o fizesse lembrar-se dela”.

O medo nosso de cada dia


"Bizarro, embora muito comum e familiar a todos nós, é o alívio que sentimos, assim como o súbito influxo de energia e coragem, quando, após um longo período de desconforto, ansiedade, premonições sombrias, dias cheios de apreensão e noites sem sono, finalmente confrontamos o perigo real: uma ameaça que podemos ver e tocar".

Bauman, Zygmunt. Medo Líquido, p. 7

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O medo vem das vísceras. Contrai músculos e alma e nos torna pequenos e anônimos. O medo grita - nos olhos, na pele, no corpo. Por isso inaugura o humano. Constrói para nós uma segunda carne e nos põe a perambular seminus pelo mundo.

Era uma vez o Medo e ele se fez respiração entre nós.

Narrando em voz alta nossas histórias, não seria equivocado dizer que o medo faz arqueologia com as nossas vidas. Recolhe evidências esquecidas nos subterrâneos e traz à luz sentidos já secularmente enterrados. O medo abusa. Pega o passado pela mão e faz com que caminhe sem cerimônia pelo corpo. Amplifica o som desse corpo que vocifera seus primórdios, quando ainda era plasma e cartilagem. Porque tudo foi registrado e ao medo nada escapou no seu banco inesgotável de memórias.

No corpo que é desde sempre território alheio, o passado circula, pulsa, se enquista e finalmente adormece. Mas o medo sempre desaprova o silêncio. Acorda o passado aos solavancos e traz à superfície aquilo que tínhamos engessado entre as paredes do esquecimento.

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Se o medo nos imobiliza e reduz, somos quase gratos quando ele expõe nossos machucados impronunciáveis. Bordas não-tratadas de feridas logínquas.

Estranha sensação esta - a de alívio pelo presságio que, enfim, mostra seu rosto. Se a dor é imensa quando o mal se revela, maior ainda é o pavor que vem da dúvida, da ausência de carne que imaterializa o mal que nos assombra.

Quando os fantasmas tomam corpo e se sentam à mesa, sabemos que é hora de rivalizar com o medo e pegar o passado pela mão. Hora de derrubar paredes, tornar líquido o cimento que aprisiona as memórias do corpo e deixar o passado, enfim, volatizar-se, ao modo dos bons perfumes.

domingo, 30 de março de 2008

"(...) sabendo nós, enfim, que o que dá o verdadeiro sentido ao encontro é a busca e que é preciso andar muito para alcancar o que está perto."

Sr. José, em seus pensamentos. Saramago. Todos os Nomes.

Sparagmos II ou Penteu Dilacerado

Os gregos tinham uma relação curiosa com os afetos. Não é por acaso que Dioniso, intolerante com a insistência na noção de medida, põe os gregos à prova todo o tempo, mostrando que onde há cuidado em excesso há também loucura de sobra.

As mênades, seguidoras de Dioniso, tinham nos seus ritos de adoração, um alerta para todos aqueles que tratava o deus como um estrangeiro, afugentando pra longe os riscos do vinho fácil e das experiências do sentir.

A cada recusa, Dioniso premia com a loucura. Pior que o contato é o transbordamento. E os rituais de Dioniso contam esta história. As bacantes subiam as montanhas dançando (oreibasia) e lá, em êxtase, dilaceravam animais e os comiam crus. À primeira parte do ato, o desmembramento dos bichos, chamou-se sparagmos. Ao segundo, o de comê-los, omofagia. Não eram apenas os animais que entravam no ritual. Penteu, rei de Tebas, confundido com um leão, é dilacerado pela própria mãe - a cabeça como prêmio pela dança en homenagem ao deus.

Muita coisa se tira da história de Penteu. E dos animais dilacerados pelas mênades, no tempo congelado dos ritos dionisíacos. A advertência é clara: recuse o presente e suas surpresas, embrulhe-se seguramente com suas memórias, e nada ficará como antes. O transbordamento pode ser o melhor dos prêmios. Mas na sua recusa, Dioniso nem pensa, respondendo de pronto àquele que se desvia dos novos quereres: devolve as memórias em pedaços - fragmentos já irreconhecíveis de si mesmo e do Outro - como a dizer que só há um vento a seguir: o do futuro.
... Ele me disse que tinha lido este livro e, para minha surpresa, lembrava de cor as partes principais. As mais tocantes. Como uma senha. A senha do Abulafia. Pensei com os meus botões: - é ele. O mundo girou novamente.

Mas o homem saiu e nunca mais voltou. Eu me perdi junto com a mulher desconhecida, entre as páginas anônimas de Todos os Nomes.

Sparagmos I - os bichos dilacerados da memória


"as velhas fotografias enganam muito, dão-nos a ilusão de que estamos vivos nelas, e não é certo, a pessoa para quem estamos a olhar já não existe, e ela, se pudesse ver-nos, não se reconheceria em nós"
Sr. José em suas inúmeras reflexões. Saramago. Todos os Nomes.

***
Não estava mais lá. Amareleceu.
Os olhos vivos, onde foram parar?
O sorriso estudado, repetido, reprodutível sem demora, escondeu-se em que vão?
De que modo os acontecimentos imprimem marcas no rosto, alterando fisionomias e sorvendo, em carnívoras respirações, o arrebatamento que um dia esteve lá?

Imagem e corpo se desatam, mas os retratos devolvem, como bichos dilacerados, pedaços reconhecíveis de memória. Antes que se diluam pra sempre nos labirintos do esquecimento, a fotografia congela o que o tempo irremediavelmente desfaz.

Como um fio que pés desesperados insistem em reter, o retrato é ponte frágil com um passado já fora de alcance. É esperança de saborear, fora do tempo e para além dele, restos de gosto que sobrou na língua. Mas que, por ser nota ora apreensível, ora indecifrável, escapa pra sempre do nosso total entendimento.

O apetite de Saturno e a morte dos grandes amores

Penso nos grandes amores que morrem. Silenciosos. Sem gritos. A deixar-se engolir aos poucos pelo escuro incerto de mais um dia que vai... a desfazer-se na saliva corrosiva de Saturno - senhor do Tempo e da razão que perdemos.

Não há como não chorar pelos momentos idos, mastigados, triturados sem vacilo. Os dentes implacáveis de Saturno dilaceram a carne dos amores. Nem os filetes de memórias - notas trôpegas que ainda suscitam logínquas melodias - restam inteiros.

Esta é a parte mais triste. A espuma do esquecimento gela os nervos, e o último fio entre impulso e lembrança se desfaz. Mesmo correndo em sua direção, o impulso já não chega a tempo. A voz é débil, os braços não atingem mais a lembrança - que, solitária e cansada, acelera o passo e, já esquecida, alcança a próxima esquina.

***

"Entre mi amor y yo han de levantarse
trescientas noches como trescientas paredes
y el mar será una magia entre nosotros.

No habrá sino recuerdos.
Oh tardes merecidas por la pena,
noches esperanzadas de mirarte,
campos de mi camino, firmamento
que estoy viendo y perdiendo...
Definitiva como un mármol
entristecerá tu ausencia otras tardes".
Borges, J. L.

quarta-feira, 26 de março de 2008

Fios, fios e mais fios

Fios.

Entrelaçados. Desatrelados. Retorcidos.

Como fragmentos de silêncio ou filamentos humanos de dor.

Hiatos de linha. Frágeis pontes entre o desejo e o vácuo.

Chumaços de algodão,

A amortecer a queda. A vestir dores. A esconder, colorir

e alinhavar restos.

Ariadna: entre a tristeza e a saudade


Ariadne, no Museu do Prado

E Dioniso diz à Ariadne: "Tu tens as orelhas pequenas, tens as minhas orelhas, diz-lhes uma palavra prudente". Claro que não basta para trazer Ariadne de volta ao senso, razão porque ele, então, como o deus brincalhão que é, acrescenta: 'Por que é que as tuas orelhas não são ainda maiores?"


Deleuze, Gilles. O Mistério de Ariana. Adaptação.

terça-feira, 25 de março de 2008

Ariadne: resistências subterrâneas




"E foi sobre estes bancos de solo ainda mal consolidados, mistura incerta de terra e água, que se apressaram a proliferar os mangues - esta estranha vegetação capaz de viver dentro de água salgada, numa terrra frouxa, cosntantemente alagada. Agarrando-se com unhas e dentes a este solo para sobreviver, através de um sistema de raízes que são como garras fincadas profundamente no lodo e amparando-se, umas nas outras, para resistirem ao ímpeto das correntezas da maré e ao sopro forte dos ventos alíseos (...), os mangues foram pouco a pouco entrelaçando suas raízes e seus braços numa amorosa promiscuidade, e foram assim consolidadndo a sua vida e a vida do solo frouxo das coroas de lodo donde brotaram". Castro, Josué. Fome, p. 28

***

Ariadne. Quando a vi, foi como se tivesse me deparado, de surpresa, com um espelho. Tamanho o esforço em achá-la, a ela e seu labirinto.

Absorta em sua dor, Ariadne é uma incógnita. É a chave, o fio, a passagem que conduz à saída de uma arquitetura intrigante e estéril, que escapa à decifração. O labirinto é o mesmo e ainda outro. É repetição e ao mesmo tempo ilusão ótica - já que onde tudo parece igual, a surpresa não tarda. O labirinto é metáfora e golpe de vista, geometria de um demiurgo gozador.

Mas se Ariadne é o fio e a saída, ela é, também, a metáfora da alienação. Com olhos colados no passado, ela é a via que conduz os demais ao exterior, mas não pode livrar-se a si mesma. O chão que pisa é movediço. Sem saber que é anfíbia, e desconhecendo as sabedorias de almoxarifado que possui, mergulha na tristeza, vendo, sem reação, a partida de Teseu.

Não grita. Se desmancha por dentro. Deixa que a grama cresça, descuidada, nos vãos do seu corpo. Ariadne é pântano. Mistura incerta de água e terra. Visão incômoda do desleixo, ela é o retrato de seu próprio abandono.

Mas se os mangues são uma estranha vegetação capaz de viver em terra frouxa e alagada, Ariadne é esta estranha e resistente combinação, capaz de sobreviver aos ambientes mais inóspitos e hostis. Seus olhos congelados, colados na superfície hipnótica do ontem, escondem raízes vivas e férteis a se debaterem na face escura e opaca da lama.

Quem a vê, não diz que reage. Não vê que, num processo lento e incansável, ela desata seus próprios fios. Como uma tecelã de si mesma, Ariadne se refaz.

segunda-feira, 24 de março de 2008

O amor e a patologia do imaginário


"Por mais amores que possamos ter tido, assim como cada um de nós só tem uma maneira de amar, através de tantas pessoas que quisemos tão apaixonadamente conhecer, não terá cada um de nós ainda assim conhecido senão a si mesmo? (...) Mas se ninguém escapa a si mesmo nem pode jamais conhecer senão a si mesmo, se, ignorando tudo do outro, sempre podemos portanto supor tudo sobre ele, não será o ciúme a patologia do amor senão na medida em que o amor é a patologia do imaginário? [Poderíamos assim falar de] uma potência invasora e quase obsessional do imaginário, de uma invencível ilusão, que ele faz experimentar a cada novo amor, de poder enfim sair de si mesmo para entrar num outro coração como se entraria numa nova vida"

Grimaldi, Nicolas. O Ciúme: estudo sobre o imaginário proustiano, p. 7. Adaptação.

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Voltei de Madrid pensando sobre os amores de nossa vida e os critérios de escolha que animam nossas relações. Peguei Grimaldi na prateleira assim como quem não quer nada, como quem só quer folhear um bom e enxuto livro para uma inspiração, e o pensamento veio de enxurrada. Grimaldi entende Proust e eu procuro entender Grimaldi. Sim, porque sua análise da teoria proustiana é de gelar os ossos. O amor que tende desde o princípio para o esquecimento e não para o fervor, como uma ampulheta virada. O amor como patologia do imaginário. O amor como passos na direção de si mesmo, como as empreitadas ingênuas de Narciso para mergulhar em suas próprias profundezas.

É isso que Grimaldi promete. Desvendar a razão do amor ser assim para Proust - uma espécie de maldição ou encantamento. De qualquer modo, doloroso mesmo é lidar com as máximas proustianas e vou aqui comentar uma delas: a insignificância da pessoa amada. Ou, melhor seria dizer, usando os termos de Grimaldi, a "desproporção entre a nulidade da pessoa amada e a imensidão do drama que ela ocasiona" de modo a seguir-se "a incompreensibilidade do amor para aqueles que, ignorando necessariamente sua causa, dele não conseguem ver mais que a irrisória ocasião" (p. 10).

Muito bem, a coisa é simples. Você ama, ainda que as razões não sejam claras e os mundos de ambos sejam rigorosamente diferentes - para não dizer dissonantes. Ainda que os parâmetros de mundo sejam antípodas, o que nos faz desaguar na segunda lei proustiana (e dela só falaremos na seqüência). Como o amor é Acontecimento, é ruptura na lógica do cotidiano, ele não tem compromisso com aquilo que nos é comum, que nos agrupa. O amor, portanto, não é o que nos une, mas o que nos separa. O que nos coloca em estado de encantamento, de uma quase possessão, capaz de nos tornar estranhos em terra pátria. E os outros pensam que vc está mesmo fora de si, porque o que vêem ou ouvem não parece justificar o caráter implacável e denso do que você julga sentir.

Um dia você mesmo irá percebê-lo e esta é a parte triste da história. Ou, dependendo de como a vemos, a parte oportuna da coisa toda. Triste porque não há encantamento que não se acabe. O tempo se encarrega de embotar as cores e comprometer a nitidez dos afetos, lembrando incomodamente que tudo que nasce tende a morrer. Claro que sempre há a possibilidade de que um condão desavisado toque nossas cabeças (ou a dos outros) em encontros futuros, mas, em princípio, o encantamento só conhece a linguagem do agora.

A parte boa de tudo isso é que todos os seres podem achar o bilhete premiado. Pelo menos assim presume Proust, já que nada, nenhuma qualidade transcendente, responde pela escolha que fazemos ou fazem de nós. O belo pode capturar o olhar, o desejo e a atenção, mas não garante ou mantém o encantamento. O encantamento é, assim, produto subterrâneo, que acontece nas vias sem acesso do inconsciente. Um nariz meio torto, um sorriso largo ou quase imperceptível, um jeito de mexer a cabeça ou as mãos... e cataploft... o amor fisgou.

Claro que se o amor foge à lógica da competição e se o que se ama não se explica, a experiência epifânica pode estar na próxima esquina ou no fim do mundo, à direita. Pode, como uma febre, chegar de sopetão. Ou, ainda, nunca chegar - semelhante aos unicórnios e outros bichos imaginários de que muito se fala, mas nunca se viu ou sentiu a presença.

Grimaldi pergunta o que é que se ama quando se ama, já que aquele a quem destinamos o afeto nada conta para a experiência do amor. Eu, à semelhança de Grenouille ou de Robert, insisto em uma pergunta que penso vir antes: que substância primordial, primitiva, explica o acontecimento do amor? O que nos atrai à próxima esquina, verte nossos olhos e dociliza nosso espírito?

Se este torpor que o inconsciente procura não puder mesmo ser reconhecido, se o segredo fizer parte da experiência do sublime, então, não tem jeito: caminharemos feito cegos à espera de uma epifania cuja substância desconheceremos. Forjaremos encontros e durações, sem saber que estamos mais uma vez nos perdendo, caminhando na direção contrária deste Outro que viria polvilhar nossa noite com estrelas de encantamento.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Grenouille I - vendo com as narinas


"Terrier tinha a impressão de que a criança o olhava com as narinas, o examinava sem complacência, mais implacavelmente do que poderia fazê-lo com o olhar, como se absorvesse pelo nariz algo que emanava de Terrier e que ele próprio era incapaz de reter ou dissimular... E Terrier sentiu-se repentinamente (...) a tresandar a suor e vinagre, a couve-roxa e a roupas sujas. Teve a sensação de se encontrar em toda a sua nudez e fealdade, perscrutado pelo o olhar de alguém que o fixava sem nada revelar de si. Era como se esta exploração olfactiva lhe atravessasse a pele e lhe devassasse o íntimo". Süskind, Paul. O Perfume, p. 23

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Verdade é que os sentidos nos traem mais do que as palavras. Há uma razão pra isso: as palavras são lentas e ariscas, tateando o solo antes de cair com segurança aos pés do interlocutor. Já os olhos não têm medo do improviso, saem na dianteira e revelam de imediato suas impressões.

Os olhos chegam onde as palavras não alcançam. E, audaciosos, amassam as palavras muito ensaiadas - agora descartáveis como o jornal de ontem. Perto do olhar, as palavras são rascunhos.

Basta ver que o amor não entra pela boca, mas, sim, pela retina. Um escritor polonês chegou mesmo a dizer, em um de seus contos, que o amor era listrado, marcado pela visão daquele que atravessou a retina pela primeira vez. Penso que se oftalmos fossem terapeutas, talvez conseguíssemos ir direto ao ponto. Ou melhor, ao risco. Aquele que, imperceptível, marcou nossas pupilas, alterando modos de ver e de dizer. Ou não dizer. Porque olhos também podem emudecer, voltar-se pra dentro e escapar à luz. Podem revolver passados e se perder nestes labirintos de tempo. Neste caso, só outros olhos, munidos de um fio ou funcionando como ponte, podem demovê-los do silêncio da escuridão.

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Mas se os olhos convidam, os cheiros quebram as resistências. Assim como certos gostos, os cheiros vêm do passado e, como tal, de lugares escuros e empoeirados da memória, onde sequer sabemos se existe vida. Sabores e aromas funcionam, assim, como uma espécie de condão - materializam pessoas, encontros, histórias. Onde a vida pôs um ponto, os sabores e os cheiros adicionam vírgulas - oásis de imaginação em um deserto de certezas. Vírgula-miragem, é verdade, já que no momento seguinte a memória já não está lá.

Os cheiros revelam. Comunicam no silêncio como os olhos. Mas são ainda mais rápidos do que eles. Diferente da visão, o olfato acessa subterrâneos que a consciência não vê. Quando os olhos se perdem, são os cheiros que trazem o invisível à superfície. Grenouille descobre muito cedo esta habilidade dos cheiros e por isso o tomam por um vidente, capaz de dizer o futuro das coisas e das pessoas. Mas Grenouille não vê nada. Apenas conversa com os ventos. Deixa que eles tragam as almas dos vivos, as notas que retém suas presenças, mesmo quando já estão mortos.

Não somos diferentes, tentando requentar momentos natimortos e enfrascar suas essências para que o sublime perdure. Como uma espécie de câmara escura, nossos olhos silenciam e se fecham, para que os cheiros, mais impetuosos e imprudentes, eternizem trechos arranhados da nossa história. Antes que se percam na escuridão morna do esquecimento. Os cheiros trazem os nossos fantasmas para a sala de visitas. Depois de um tempo, eles, os fantasmas, se cansam e vão. Ficamos sós, em trânsito, entre a vigílio e o sono. Entre o mundo dos vivos e o reino dos mortos.

Grenouille acredita inocentemente poder fixar cheiros e congelar sensações, adormecer o tempo e manter em suspensa a experiência estética da beleza e do perfeito. Porque é sabido que a experiência de contato com sublime redime os espíritos mais retráteis. Redime as cicatrizes, o corpo imperfeito, as rugas e feridas internas que o corpo engoliu. De modo que o contato com o sublime expõe gengivas, vísceras - o melhor e o pior de cada um de nós, perdidos e assustados diante do miraculoso.

E o miraculoso na vida-nossa-de-cada-dia é o amor. Convite irrecusável que tira o chão dos pés . Que promete o céu e o inferno juntos. Por isso, Robert, em Os Cinco Sentidos, procura um a um de seus ex-amantes pra sentir-lhes o cheiro, na expectativa de saber se algum deles alguma vez o amou. Por isso, Rona, a confeiteira, escapa enquanto pode da experiência dos sabores. Sabe que em algum momento vai amargar o gosto da decepção. E amarga. Não porque o desencontro estivesse em seu caminho. Mas porque ele crescia debaixo da sua pele.

***

E com a pele voltamos ao início da conversa, quando o anti-herói Grenouille inicia sua aventura em direção ao enigmático e estranho cheiro das coisas e das pessoas. Terrier pressente que Grenouille vê com as narinas. De minha parte, arriscaria dizer que as pessoas vêem com o tato. E que nada devassa mais um indivíduo do que o contato nervoso dos dedos.

Se estivesse no lugar de Terrier, não teria medo daquele que pode me ver com o nariz. Mas com certeza daquele que pudesse ler, nos códigos cifrados do meu corpo, as tristezas, os desencontros, os medos encapsulados. Não é preciso ver. As feridas - de corpo e de alma - brotam na superfície como escritas em braille.

sexta-feira, 14 de março de 2008

Em busca do cheiro perdido



Na obra "Em Busca do Tempo Perdido", Proust nos mostra uma terrível realidade: o passado, ainda que sabores logínquos o tragam de volta, não permanece no palato por muito tempo. Desembaraça-se da língua como palavra que já foi. Lembrança despetalada da memória a fertilizar outro chão. O do inconsciente.

Mas se o gosto nos dá a esperança ingênua de que vamos reter a experiência cuja lembrança nos amolece de amor, é para, no minuto seguinte, descobrir que ele não mais está lá. Foi perdendo os sentidos, em suspiros inaudíveis. Foi deixando a língua, o corpo, a memória. Saiu pela porta dos fundos.

***

Pior do que o gosto, que um dia abandona a língua sem que ela dê por conta disso, são os cheiros. Um aroma chega - e bem mais rápido - onde o gosto não alcança. Prende a memória como um marcador de livro. Porque chega mais rápido e não se deixa deter, o cheiro desarma. Se espalha. Atravessa as vísceras da memória. Volátil, nunca sabemos onde se esconde. Até que um dia, sorrateiro como um gato, volta pela porta da frente, como se nunca tivesse ido.

***

Vendo o filme sobre o perfumista Grenouille, que matava suas vítimas para extrair delas o aroma da beleza, sigo as pistas deixadas no ar. Grenouille nasce no meio do lixo e da putrefação da matéria. Nasce com a fantástica capacidade de reter cheiros. No seu primeiro encontro com a beleza, não consegue suportá-la e, sem entender, mata. Desde então traz para si a missão de nunca mais perder um aroma - de reter o que é, por sua natureza, efêmero. Noite e dia, tenta produzir com restos humanos, em uma alquimia macabra, o elixir da beleza e da perfeição. Mas Grenoille se engana na sua ingênua crueldade. A beleza pode ser reproduzida, mas não a experiência que torna o um, único. A beleza pode ser retida. O amor que se sente ou provoca, não.

A experiência dos primeiros afetos - e dos primeiros cheiros - orienta boa parte das buscas humanas. Não é à toa que Grenouille volta à cloaca imunda de onde saiu e é nela que dá seu último suspiro. Desta vez untado com o cheiro que nunca teve. Embebido em perfume - o cheiro enfeitiçador da beleza pura - Grenouille é devorado por homens e mulheres que passam.

"O perfume" é um filme forte. Requer estômago pra ver. Porque Grenouille somos nós. Nós que adoecemos de melancolia. Nós que enlouquecemos em busca do aroma perdido. Do cheiro original que nos liga, como um cordão, às primeiras respirações. Nós que perseguimos o amor, gota a gota, para vê-lo ir-se pelos ares como algo que jamais poderia ser retido.

domingo, 9 de março de 2008

"Agora você é a Hari". E esta foi a maior declaração de amor que alguém pôde dizer...


Meia-noite em Portugal. Quase nove no Brasil. Eu penso sobre as semelhanças. Aquilo que confunde original e cópia, verdade e possibilidade, amor e ilusão. Desde que cheguei aqui tenho tido ímpetos de escrever. Tanto melhor, já que vida e representação juntas caminham.

Acabo de ver um filme daqueles hollywoodianos. Prefiro não comentá-lo. Mas ele me levou a outro, sobre o qual já escrevi no passado. Solaris. Grande filme, como aliás os que lidam bem com o tempo esticado de Tarkovsky hão de reconhecer.

Mas Solaris não é só mais um filme genial. Ele fala do encontro entre cópia e original no único lugar possível - o inconsciente. A Hari que morreu e a Hari possível, feita de neutrinos. Claro que a Hari de neutrinos ganha vida própria e rouba a cena. Quem duvidaria que a representação pudesse nos tornar mais felizes? A edição do mundo sempre parece melhor. E se não é integralmente, pelo menos é a ponte possível que nos liga ao passado. Este sim - como as madalenas proustianas ou como os torrões de açúcar de Godard - a dissolver-se sem direito a minutos extras na despedida. Curioso mesmo é quando os neutrinos roubam a cena de um passado sagrado...

Não escolhi Solaris por acaso. O filme hollywoodiano me trouxe à memória algo em Solaris que vale a pena comentar. Uma declaração de amor, daquelas que a gente guarda e se emociona. Diante da imagem da mulher, que o perturba como um sonho engasgado dia após dia, Kelvin se apaixona pelo improvável. Entre os neutrinos que tornam a representação possível e a lembrança da mulher morta, Kelvin escolhe a vida. É disso que Solaris fala. Do amor que, inadvertidamente, acontece. Dos encontros que, improváveis, mudam nossa rota. Da semelhança que gera a diferença. E da diferença que gera o encontro.

Diante do improvável e das crises de identidade de Hari - não a de verdade, mas, sim, a de neutrinos -, ninguém imaginaria que Kelvin, depois de tanto resistir respondesse à amada: - Você se engana. Agora você é a Hari.

Não há garantias. O amor, às vezes, nos pega na esquina.

Sabedorias no almoxarifado


É uma vergonha dizer isso, mas eu nunca li decentemente Adélia Prado. Mal começava e me dava uma coisa... Parava violentamente alguns minutos depois.

Mas um dia eu dei com um livro - inacabado como todos os outros - que me deixou uma sensação de necessidade. Trouxe-o comigo para Coimbra. Tudo é árido por aqui nesta época do ano. Falta descobrir se é coisa de época ou se este é o destino da relação com a cidade. Creio que não, de modo que as primeiras folhas me solicitam que espere um pouco mais de tempo. Os ânimos se amansam e o sorriso aparece.

Mas voltando ao livro da Adélia. Bem, o título talvez seja evidente: - Quero minha mãe. Eu quero a minha de volta faz tempo e, olhando a história bem, tenho razões para evitar este livro. A presença dos mortos e o comércio com eles, apesar de todas as teorias simpáticas de Roberto Da Matta, sempre me saem ao paladar como cubos de açúcar. Depois que começam a se desfazer, estão em toda a parte do café, mas já não é possível vê-los em parte alguma. E somos seres acostumados à presença - o que está longe dos olhos, traiçoeiramente, vai ficando longe do convívio, para não dizer do coração (e tremo só de pensar no que digo). O convívio é o que, cruelmente, acaba determinando o destino dos laços. Queria tanto que não fosse assim...

Depois da ida, a chegada nunca será a mesma. As pessoas são outras. A conversa pode parecer requentada. O amor pode parecer perdido. Entremundos. Ou como o saco de ossos que certa personagem de Cem Anos de Solidão enterrou por equívoco na parede. A ausência de carne a cobrar nossa atenção.

Enquanto os ossos dos meus inúmeros fantasmas chacoalham na parede, eu me lembro do que disse a Adélia Prado - mais uma destas presenças literárias e fantasmagóricas da minha vida:

"Tinha vantagens não saber do inconsciente, vinha tudo de fora, maus pensamentos, tentações, desejos. Contudo, ficar sabendo foi melhor, estou mais densa, tenho âncora, paro em pé por mais tempo. De vez em quando ainda fico oca, o corpo hostil e Deus bravo. Passa logo. Como um pato sabe nadar sem saber, sei sabendo que, se for preciso, na hora H nado com desenvoltura. Guardo sabedorias no almoxarifado"

"Que as vidas são como os quadros, precisaremos sempre de olhá-las quatro passos atrás, mesmo se um dia chegámos a tocar-lhes a pele, a sentir-lhes o cheiro, a provar-lhes o gosto"

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"Quem somos nós para falar de conseqüências, se da fila interminável delas que incessantemente vem caminhando na nossa direcção apenas podemos ver a primeira, Significa isso que algo pode acontecer ainda, Algo, não, tudo, Não compreendo, Só porque vivemos absortos é que não reparamos que o que nos vai acontecendo deixa intacto, em cada momento, o que nos pode acontecer, Quer isso dizer que o que pode acontecer se vai regenerando constantemente, Não só se regenera como se multiplica, basta que comparemos dois dias seguidos, Nunca pensei que fosse assim, São coisas que só os angustiados conhecem bem"

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"Em rigor, não tomamos decisões, são as decisões que nos tomam a nós"



Sr. José pensando alto. Ou nem tão alto assim. Saramago, José. Todos os Nomes.
"De facto não há nada que mais canse uma pessoa que ter de lutar, não com o seu próprio espírito, mas com uma abstracção"
Saramago, José. Todos os Nomes, p. 27

Abandonando figos na saída de Naxos


Dizem que toda borboleta tem seu tempo de lagarta. Espero que o meu passe rápido. Ariadne me acena com a mão de sua imóvel condição em Naxos e, desta vez, sou eu que escolho partir da ilha em busca do mar. Sylvia também me olha assustada. Já não quero tanto seus figos roxos, sempre prestes a cair, maduros demais. Quero o agora com suas incertezas. É hora de acenar para Deméter e partilhar os grãos de romã. Ou simplesmente aceitar que as romãs são um rito. Não há como evitá-las. Mesmo quando sangra. Por dentro e por fora.


Não escolho deixar Ariadne e Sylvia e Deméter sem uma certa tristeza. São partes inflamadas de mim. Como diz Ricardo Reis, "Em tudo que olhei fiquei em parte"... Também ele devo empacotar e esquecer na gaveta. Catucar feridas é adiar a vida e justificar o não-momento.


Que as horas boas e más fiquem no seu lugar, coladas no tempo, como moscas. É tempo de lançar novas sementes e colher poesia nova. Que venham as tempestades. Não tenho medo delas, já que sempre lançam água em território adormecido. Também não tenho medo de Naxos. Nem de figos ou romãs. Que passem todos e eu possa celebrar, no dia seguinte, a chegada de mais uma manhã.