quinta-feira, 3 de julho de 2008

Uma questão de janelas

Clark et Pougnaud. Homenagem a Edward Hopper.

A Serenata

Uma noite de lua pálida e gerânios
ele viria com boca e mãos incríveis
tocar flauta no jardim.
Estou no começo do meu desespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.
Eu que rejeito e exprobo
o que não for natal como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão.
Quando ele vier, porque é certo que vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
- só a mulher entre as coisas envelhece.
De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?

Adélia Prado. A Serenata.

terça-feira, 1 de julho de 2008

Imagens interrrompidas


Retomo Sylvia - inspiração necessária para todos os que transformam vida em matéria-prima.

Um verso - e todo um mundo de sensações vem à superfície... Como se este mundo já estivesse ali, à espera de uma porta, pronto a irromper e inundar o espaço concreto e cartesiano das experiências corriqueiras.

Hoje reencontrei Mirror. E, quase por acaso, também, uma bela versão desta poesia para o português.

Sylvia fala com as dores, com o deambular do pensamento, com uma respiração própria que espasma as palavras. Não é fácil traduzi-la. É preciso estar atento ao seu pulso, às metáforas escolhidas, à sua história. À poesia que ela faz com seu corpo, com sua vida, com suas vísceras.
***
A versão em português é de Leila Silva. Um pequeno tesouro para os leitores de Plath.

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MIRROR

I am silver and exact. I have no preconceptions.
Whatever I see, I swallow immediately.
Just as it is, unmisted by love or dislike
I am not cruel, only truthful –
The eye of a little god, four-cornered.
Most of the time I meditate on the opposite wall.
It is pink, with speckles. I have looked at it so long
I think it is a part of my heart. But it flickers.
Faces and darkness separate us over and over.

Now I am a lake. A woman bends over me.
Searching my reaches for what she really is.
Then she turns to those liars, the candles or the moon.
I see her back, and reflect it faithfully
She rewards me with tears and an agitation of hands.
I am important to her. She comes and goes.
Each morning it is her face that replaces the darkness.
In me she has drowned a young girl, and in me an old woman
Rises toward her day after day, like a terrible fish.

ESPELHO

Sou prata e exato. Eu não prejulgo.
O que vejo engulo de imediato
Tal qual é, sem me embaçar de amor ou desgosto.
Não sou cruel, tão somente veraz —
O olho de um deusinho, de quatro cantos.
O tempo todo reflito sobre a parede em frente.
É rosa, com manchas. Fitei-a tanto
Que a sinto parte de meu coração. Mas vacila.
Faces e escuridão insistem em nos separar.

Agora sou um lago. Uma mulher se inclina para mim,
Buscando em domínios meus o que realmente é.
Mas logo se volta para aqueles farsantes, o lustre e a lua.
Vejo suas costas e as reflito fielmente.
Ela me paga em choro e agitação de mãos.
Sou importante para ela. Ela vai e vem.
A cada manhã sua face reveza com a escuridão.
Em mim afogou uma menina, e em mim uma velha
Salta sobre ela dia após dia como um peixe horrendo.

Entretelas



Eleven A.M. (1926)
Edward Hopper

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Hopper diz tudo. Sempre.