domingo, 28 de setembro de 2008

Bordas duras de um corpo ignorado


Outono. Folhas caem naturalmente das árvores.

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Nenhuma violência ou artificialidade no ato de despregar-se.
Nenhum grito ou expressão de incômodo.

Caem como se o trajeto ao chão fosse uma evidência indolor.
Ou como se as folhas, tendo pálpebras,
se fechassem diante de um destino inevitável.

Sorrateira e harmoniosamente, as folhas gestam sua despedida.

Como quem borda uma colcha,
preparam o chão para seus frágeis corpos.
Quase inexistentes de tão leves
Mas suas bordas espetam com um fim muito claro:
dar um último e silente grito.

Um último e silente grito.
Antes de se perderem nos metálicos ruídos inumanos

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

ajeitando caminhos pra encostar no teu


"Eu descartava os dias
Em que não te vi
Como de um filme
A ação que não valeu
Rodava as horas pra trás
Roubava um pouquinho
E ajeitava o meu caminho
Pra encostar no teu (...)"


Chico Buarque. Valsa Brasileira

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Atraso o relógio pra fazer os tempos coincidirem.

Em nome desta tarefa irrealizável,
distâncias enormes foram percorridas.

Não necessariamente geográficas. Distâncias humanas.
Que, às vezes, impedem dois corpos de se encontrarem no mesmo espaço.

A incomunicabilidade tem um efeito mais terrível
do que múltiplos oceanos de distância.

Surpreendo o sol. Salto noites. Não me refaço.
Morro a cada instante. E nem tenho sete vidas.

Não me arrependo.
É deste ato poético, ingênuo e quase inócuo que precisamos.
Para que a vida se reinstale nas veias.

Porque se a distância é sempre uma medida de afeto, o tempo é um hiato sempre elástico para aqueles que se alimentam de vacúolos a-temporais de amor.

***

A música está postada aqui. Basta clicar no título.

Sobre o tempo da delicadeza


"Pretendo descobrir
No último momento
Um tempo que refaz o que desfez
Que recolhe todo sentimento
E bota no corpo uma outra vez "

Chico Buarque. Todo o Sentimento

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A tela é de Gustav Klimt.
Adam and Eve, que está na Österreichishe Galerie.
Eva inacabada. Sem as mãos e quase sem vida.

É preciso consumar o tempo de dois. O átimo de encontro.
Ou consumi-lo. Antes que se perca.
Antes que o tempo da delicadeza só permita rever
aquilo que um dia foi 'tudo' como se tivesse sido 'quase nada'
Última lente possível para visitar, à distância, uma história.

Antes de dizer adeus.

Adam and Eve bem poderia descrever este momento ambíguo.
Este segundo intenso que antecede as rupturas internas.
Onde o sentimento está todo - fruto maduro, imenso
Com todo o líquido que pode conter.
Para, então, dele verter todo o sentimento.
A um passo do trágico e irreversível tempo da delicadeza.


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A música está no youtube. Basta clicar no título deste post.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Os flocos de neve não são eternos


Meu íntimo ao avesso.

E a cada hora que passa, minha alma congela. Dores como flocos de neve, misturando-se, anônimas, ao chão gelado e escorregadio da minha memória.

A imagem de um banco solitário ao fundo me consola. Em algum momento, as marcas vão desaparecer na neve, como se nunca tivessem existido.

Setembro vai passar. Setembro tem que passar.

Para que os olhos do meu corpo possam de novo ontemplar a paisagem.

E para que uma certeza ajude nos momentos estéreis: a de que flocos de neve não sobrevivem às incontáveis estações.