sábado, 31 de maio de 2008

João Henriques há de me perdoar

Então.

Passeando pelos blogs num sábado ensolarado - o mundo lá fora acontecendo e eu aqui dentro pensando, pensando -, cheguei no João Henriques. Ou, melhor apresentado, no blog "O Crime de Laio".

Peço licença pra colocar aqui uma poesia que encontrei por lá, entre os papéis de João Henriques. Papel de 2007, perto do Natal, já um tanto amarelecido. Era uma poesia de um moço chamado João Dionísio. Bom, do João Dionísio eu falo mais tarde.

«Poema Muito Breve e Muito Raso»

Tenho saudades do chá maçã canela
E da tarte maçã canela
E da tarde em que seguiste os meus passos
E do teu não, também tenho saudades
E da tua respiração quente
Dos teus braços e abraços
Do brilho do teu sorriso
Dente por dente por dentro
E das tuas roupas azuis codificadas
E das tuas gargalhadas nuas
Do teu talento tolhido
Da tua toalha molhada

De nada e de tudo
Dos pés à cabeça,
Tenho saudades tuas,
Tenho saudades tuas
Arre! Tenho saudades tuas!


João M. Dionísio

***

Bom, minha gente. O 'arre' diz tudo.
"Meu coração é um balde despejado"

Pessoa, Fernando. Tabacaria.

***
E eu me pergunto se alguma coisa ainda fica.
E por que vielas, por que sulcos, por que frestas terão escorrido os afetos, os desejos, os amores.

A efervescência das palavras indigestas


As metáforas sempre foram minha companhia favorita.

Elas dizem o que quero dizer, sem deixar minha alma à mostra. Vulnerável, explícita. Sem uma gaze mínima que a proteja dos olhos dos curiosos.

Não sou Pessoa, que convida a ser inteiro no mínimo que faz. Ele, que nada exagera ou exclui. Sou amiga das hipérboles - lentes de aumento para examinar o mundo - e das metáforas, antídoto sutil para os excessos do dia anterior. Espécie de Sonrisal para os exageros da língua e dos olhos.

Também sou amante dos bons hipérbatos. Aqueles que embaralham as palavras, invertendo a ordem das coisas - como quebra-cabeça às avessas.

Estas são minhas ferramentas de dia e meus brinquedos de noite. A gaze que protege minhas vísceras, mas que também torna o suor delas a matéria-prima do dia seguinte.

São loucas!



"Vi teu braço acenando, entre as velas já soltas.

Dizem as velhas da praia que não voltas.

São loucas! São loucas!"


David Mourão-Ferreira


Entre hiatos de significado e a aposta na Terra Prometida


"E foi sobre estes bancos de solo ainda mal consolidados, mistura incerta de terra e água, que se apressaram a proliferar os mangues - esta estranha vegetação capaz de viver dentro de água salgada, numa terra frouxa, constantemente alagada. Agarrando-se com unhas e dentes a este solo para sobreviver, através de um sistema de raízes que são como garras fincadas profundamente no lodo e amparando-se, umas nas outras, para resistirem ao ímpeto das correntezas da maré e ao sopro dos ventos alíseos, que arrepiam sua cabeleira verde, os mangues foram pouco a pouco entrelaçando sua raízes e seus braços numa amorosa promiscuidade, e foram assim consolidando a sua vida e a vida do solo frouxo das coroas de lodo donde brotaram (...)

Os mangues vieram com os rios e, com os materiais por esses trazidos, foram os mangues laboriosamente construindo seu próprio solo, batendo-se em luta constante contra o mar. Vieram como se fossem tropas de ocupação e, em contato com o mar, edificaram silenciosamente e progressivamente esta imensa baixada aluvional hoje cortada por inúmeros braços de água dos rios e densamente povoada de homens e caranguejos (...)

Tendo os mangues realizado esta obra ciclópica, não admira que, hoje, sejam eles divinizados pelos habitantes desta área, embora não saibam os homens explicar como o mangue realiza este milagre de criar terra como se fosse um deus (...)"


Castro, Josué. A descoberta da Fome

***

As palavras de Josué fazem eco nos meus ouvidos... e eu penso sobre o sentido desta "estranha vegetação capaz de viver em terrra frouxa". Que habilidade proto-humana será essa, a de ser pra sempre interstício, suportando hiatos de significado, em busca da terra prometida?

Como será manter as garras fincadas no lodo, na certeza de que um dia a terra será firme e farta? Fato é que "em luta contra o mar"- evidência quase injusta do belo -, o mangue fétido e repulsivo confia que seu dia chega. Sobrevive aos ventos e à correnteza. Ondula com o movimento num mimetismo inteligente - e se mantém firme. No seu silêncio, o mangue se espraia pelos espaços mais isolados.

Confia que ali haverá terra. Basta aguardar. Estendendo seus improváveis e estranhos braços, o mangue acolhe. Abraça silenciosa e permanentemente. Até que a terra se deixa ficar. Primeiro confusa e frouxa. Depois confiante e desejosa do contato com estes dedos verdes e protetores. Feios e macios.

O mangue pede outros sentidos. Os olhos são cegos para entender. A terra, cansada de resistir, adormece para poder receber tais carícias. E o mangue, fértil de um jeito que só os dedos - e não olhos - podem saber, impregna a terra incerta com suas sementes verdes. Até que mais areia umedecida saia da boca deste braço esquecido de mar.

sexta-feira, 30 de maio de 2008

Nenúfares em tempos de proto-amores


Relações de afeto. Meu tema preferido.

Penso no modo como as pessoas entrelaçam suas histórias. Algumas por afinidade. Outras por atração. Mas muitas, realmente muitas, por sobrevivência.

A sobrevivência destila o afeto na corrente sanguínea. Cria nó górdio entre aqueles que ainda ontem eram estranhos. Nos torna anfíbios de sentimento: ávidos por líquidos que nos amoleçam; rígidos para o chão que nos recebe.

Ser anfíbio é ser sobrevivente. É também fazer-se invisível, camaleônico. É saber prender-se de outro modo onde o chão falta, onde os olhos enganam e de nada servem. Em terreno túrgido, outros sentidos são necessários. Onde os olhos encontram barro, afundam-se os pés. Onde a água parece certa, a terra brota teimosa e contra todas as evidências. Mangues e corações: equivalências de um mundo em permanente definição.

***

Demiurgo estranho, o mangue confere vida ao que parece morto, ao que é feito de pedaços inanimados. Faz sementes germinarem em terreno improvável, feio, fétido. Por isso é a melhor imagem para os encontros humanos - que por baixo da lama escura que é o passado-nosso-de-cada-dia, faz nascer novas histórias. Novos cordões de terra e de água.

Fios. Laços. Cabeleiras vegetais agitando-se sob um mundo líquido. Tão imprecisas que se confundem com a areia.

Entre a terra e a água, o encontro improvável. A água dissolvendo a terra e ameaçando sua estabilidade. A terra consumindo a água, encharcando-se dela, até que nada sobre. Dos dois, a lama. E com ela, o ser anfíbio. Aquele que sobrevive, que testemunha, que confere a medida e a fecundidade das coisas.

É na lama que o mundo toma forma.
Que o que é fértil toma corpo.
Que os amores amadurecem, improváveis. Como filamentos verdes em meio ao que antes parecia cimento.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Jeremy: Humm. It's like these pies and cakes. At the end of every night, the cheesecake and the apple pie are always completely gone. The peach cobbler and the chocolate mousse cake are nearly finished... but there's always a whole blueberry pie left untouched.

Elizabeth: So what's wrong with the blueberry pie?

Jeremy: There's nothing wrong with the blueberry pie. Just... people make other choices. You can't blame the blueberry pie, just... no one wants it.

Lizzie e Jeremy conversando sobre a torta de mirtilo. My Blueberry Nights.

terça-feira, 27 de maio de 2008


"Nunca tive boa memória, sempre sofri essa desvantagem: mas talvez seja um modo de recordar apenas o que se deve, talvez a maior coisa que nos aconteceu na vida, a que tem algum significado profundo, a que foi decisiva - para o bem e para o mal - nesta complexa, contraditória e inexplicável viagem rumo à morte que é a vida de toda pessoa. Por isso minha cultura é tão irregular, repleta de enormes lacunas, como que construída com restos de belíssimos templos cujos pedaços se encontram entre detritos e plantas selvagens. Os livros que li, as teorias que freqüentei, deveram-se a meus próprios tropeços com a realidade"

Sabato, Ernesto. Antes do Fim


***

A memória é uma invenção.

Não há realidade objetiva; apenas um passado que se reconstrói como lembrança à medida que o presente vai adicionando (ou depurando) significados. Não há memória intacta, assim como não há acontecimento cujas bordas não sejam comidas pelo tempo.

Náufragos de nossas próprias histórias, mergulhados até o pescoço em ressonâncias que sequer conhecemos, nos atamos a pequenos fragmentos de vida. Onde o dia não é azul, mas também nem é tão cinza. Ou, ao contrário, onde as nuvens estão grávidas de água, prontas para parir lamentos ancestrais. Não importa.

Cinza chumbo ainda é melhor que cor nenhuma. Melhor que uma vida que passe em brancas nuvens.

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Ao vencedor, os mirtilos



Mirtilo. Fruto exótico e pouco comum. Talvez por isso sobre na vitrine de tortas do bar de Jeremy, em Nova York. Toda diferença corre esse risc0: não agradar ao paladar e ser esquecida num canto, como se nunca tivesse existido.

Metáforas não faltam no novo filme de Wong Kar-Wai - My blueberry nights. E a sutileza e profundidade de algumas delas se comunicam com histórias que calamos ao longo da vida. Vale a pena comentar duas. As chaves amontoadas e a sempre ignorada torta de mirtilo.

O bar de Jeremy funciona como um curioso depósito de histórias de amor e ruptura, espaço sonoro e visual onde a alegria barulhenta dos encontros se mistura com o luto nem sempre silencioso dos casais que se separam. Espécie de linha divisória, o bar de Jeremy cela uma paz sempre ameaçada. Sentimentos contraditórios repousam nesta frágil linha de armistício que separa o desespero da aceitação. Claro que ambos, num cotovelo do caminho - como diria Graciliano Ramos - se confundem. Metáfora dos corações humanos, o bar de Blueberry Nights é um espaço com limites pouco definidos, em que convivem e se misturam promiscuamente lembrança e esquecimento. Insistência e abandono.

Nas mãos de Jeremy ficam chaves múltiplas de casas que ele nunca conheceu, a não ser pelo relato de seus itinerantes clientes - amantes anônimos que ora abandonam, ora são abandonados. Jeremy guarda as chaves, na intenção de não fechar portas que ainda poderiam ser abertas. No aquário em que são amontoadas, um sem-número de portas esquecidas, ainda por fechar.

É como se tomassem vida os personagens da quadrilha de Drummond... E assim "João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém". Para quem pensa que 'ninguém' é o fim da linha, a ruptura desta ciranda macabra, grande engano. 'Ninguém' é a peça fundamental neste circuito dos desencontros humanos. E tem um rosto - o daquele que deixará sobrar, todas as noites, a torta de mirtilo.

Representação dos que são sempre preteridos, a torta de mirtilo cimenta nos estômagos algumas indagações: e se na diferença costumeiramente ignorada estiver o bilhete premiado? E se o amor estiver distante das tortas de chocolate, esprimido entre mirtilos? E se formos nós a torta sempre esquecida? Haverá alguém que, por curiosidade ou pirraça, esteja disposto a deixar de lado os sabores previsíveis?

My blueberry nights é um filme sobre a solidão de quem foi esquecido. Sobre o abandono e a dor do amor que acaba sem deixar pistas, a não ser a incompreensível insistência - ora silenciosa, ora ensurdecedora - dos que ficaram no meio do caminho. Destroçados depois do fim de um amor, os personagens de Blueberry Nights sobrevivem como podem, perturbados pela presença fantasmática de um corpo sempre ausente.

Portas semi-abertas são como cicatrizes invisíveis - sempre torturam apesar da distância e do silêncio. Doem exatamente pq já não sabemos onde o fim começa. Com Jeremy desdobrimos que as chaves da casa - e do coração - podem ser mantidas num canto, sem que isto signifique que a passagem ainda esteja lá quando a oportunidade do encontro acontece. Quando o tempo é outro, o comum é que a porta dê em lugar nenhum. A um passo da soleira que separa o passado do presente, um abismo intransponível cresce. O familiar se torna estranho.

Perguntas são inevitáveis. Pq a porta se torna parede? Pq a parede pode brotar, sorrateira e concretamente, por detrás de cada porta aparente? Mais ainda, porque certas portas são estéreis e sempre fabricam paredes em vez de saídas?

Tortas e chaves são vasos comunicantes. Como Jeremy conta à Lizzie, algumas tortas são logo escolhidas e se acabam sem deixar rastro. Outras sobram pouco - um ou outro pedaço destinado aos famintos de plantão. Mas há as que são jogadas no lixo inteiras, dia após dia relegadas ao esquecimento. Pq os mirtilos sobram? Talvez pq sejam exóticos demais à primeira vista. Talvez pq sejam demasiado estranhos ao paladar. De todo modo, comunicam a solidão da Diferença - diferença que, sempre solitária, se põe a falar com espelhos.

Mas Jeremy insiste. Por isso expõe sua torta de mirtilo todas as noites à espera de um visitante curioso e nada trivial. No cotovelo do caminho, ele aposta que alguém ainda há de escolhê-la.