domingo, 12 de outubro de 2008

Entre pedras e balões


Como corrente de água que sabe por onde passa
deslizo por pedras pontiagudas

Minha pele é anfíbia
Não tenho medo dos atritos
O que me torturam são as dores logínquas
Que ainda expõem minhas vísceras ao teu silêncio

Este sim, assustador
Não por ele, que sei fluido.
Mas pela minha inabalável espera
Como se grandes pedras pudessem ser removidas
devolvendo a vida a cadáveres putrefatos

Trago teu rosto na mão
Como se fosse um balão de gás
Recuso-me a soltar a linha
Que o lançaria pelos ares

Feito um bólide
Feito um bólide

Ainda não consigo
Esvaziá-lo de vida
Espremê-lo com as minhas mãos
Como uvas descartadas

II

As pedras parecem oportunas
Preciso delas antes de soltar a linha
Para desfazer traços, apagar olhos
fazer da boca não mais que um risco pouco claro

Mais que necessárias, as pedras são urgentes
Para arrancar marcas tatuadas com cores vivas
E retirar o que meu olfato ainda captura
há quilômetros de distância,
onde os olhos sequer alcançam

As pedras entoam uma macabra canção de ninar
É preciso destruir o som do seu riso
Moer os dentes que insistem num sorriso
Sempre que o sono vem e meus sentidos vacilam

É preciso desfazer qualquer palavra
que ainda possa me pôr à espera

III

As pedras prometem escrever no meu corpo outra história
Quase celebro suas deformações
E agradeço os rasgos lancinantes
nesta pele anfíbia e cansada
Colonizada até os ossos

As pedras são quase doces
Quando prometem eliminar vestígios
que teu silêncio ainda propõe
Não espero mais pelo correio ou pelo tilintar do telefone
Só quero alfinetes para estourar a bolsa-balão

Para que sumas pelos ares
Ou escorras pelas pernas

Inspiro, expiro
E sinto este descolamento de mim
Como uma mecânica respiração

Sobre os ritos, a necessidade de morrer e a urgência de deixar passar


Os ritos são necessários.
Para celebrar as coisas que nascem.
Para chorar as que morrem.

Os ritos nunca deveriam ser abandonados
antes da sua conclusão. Vingam-se no corpo,
nele escrevendo toda a história do não-esquecido.

Quem queira entender a dor de uma alma,
que se debruce sobre as evidências do corpo que a abriga.
Lá estão as marcas ancestrais da palavra engolida.

A palavra nova anda em círculos;
só a não-palavra chega onde o terreno é desértico.

Se há uma solidariedade possível, é a do tato
a mais forte e humana das sensações.

Solidariedade que investe em desfazer, com dedos de Penélope,
os pressentimentos acumulados
em um corpo que o tempo colonizou.

sábado, 4 de outubro de 2008

Um poema sem respiração


Um poema tem urgências
Que meus espasmos não contém

Nascer é sua natureza

Como uvas ao sol
O poema escorre, quente, entre os dedos
Sempre que está maduro

Arrancá-lo fora da hora é perder sua pulsação

***

Assustou-se
Saiu das entranhas, mas não foi longe

O poema parou a meio do caminho

Como um estranho bebê
Recusou-se a sair

E eu deixei que morresse
Meu lindo poema
A um passo do oxigênio, preso no cordão

Preso por um fio
O pequeno feto-poema
já não respira

No lugar de uvas, uma seca noz
pende sem vida do meu corpo

***

Encontrei esta foto por acaso no google. A intenção de quem a postou não era a mesma. Mas a foto não podia ser mais oportuna.
Fonte: http://os-caes-ladram-e-a-caravana-passa.weblog.com.pt/arquivo/uvas.jpg