domingo, 30 de março de 2008

"(...) sabendo nós, enfim, que o que dá o verdadeiro sentido ao encontro é a busca e que é preciso andar muito para alcancar o que está perto."

Sr. José, em seus pensamentos. Saramago. Todos os Nomes.

Sparagmos II ou Penteu Dilacerado

Os gregos tinham uma relação curiosa com os afetos. Não é por acaso que Dioniso, intolerante com a insistência na noção de medida, põe os gregos à prova todo o tempo, mostrando que onde há cuidado em excesso há também loucura de sobra.

As mênades, seguidoras de Dioniso, tinham nos seus ritos de adoração, um alerta para todos aqueles que tratava o deus como um estrangeiro, afugentando pra longe os riscos do vinho fácil e das experiências do sentir.

A cada recusa, Dioniso premia com a loucura. Pior que o contato é o transbordamento. E os rituais de Dioniso contam esta história. As bacantes subiam as montanhas dançando (oreibasia) e lá, em êxtase, dilaceravam animais e os comiam crus. À primeira parte do ato, o desmembramento dos bichos, chamou-se sparagmos. Ao segundo, o de comê-los, omofagia. Não eram apenas os animais que entravam no ritual. Penteu, rei de Tebas, confundido com um leão, é dilacerado pela própria mãe - a cabeça como prêmio pela dança en homenagem ao deus.

Muita coisa se tira da história de Penteu. E dos animais dilacerados pelas mênades, no tempo congelado dos ritos dionisíacos. A advertência é clara: recuse o presente e suas surpresas, embrulhe-se seguramente com suas memórias, e nada ficará como antes. O transbordamento pode ser o melhor dos prêmios. Mas na sua recusa, Dioniso nem pensa, respondendo de pronto àquele que se desvia dos novos quereres: devolve as memórias em pedaços - fragmentos já irreconhecíveis de si mesmo e do Outro - como a dizer que só há um vento a seguir: o do futuro.
... Ele me disse que tinha lido este livro e, para minha surpresa, lembrava de cor as partes principais. As mais tocantes. Como uma senha. A senha do Abulafia. Pensei com os meus botões: - é ele. O mundo girou novamente.

Mas o homem saiu e nunca mais voltou. Eu me perdi junto com a mulher desconhecida, entre as páginas anônimas de Todos os Nomes.

Sparagmos I - os bichos dilacerados da memória


"as velhas fotografias enganam muito, dão-nos a ilusão de que estamos vivos nelas, e não é certo, a pessoa para quem estamos a olhar já não existe, e ela, se pudesse ver-nos, não se reconheceria em nós"
Sr. José em suas inúmeras reflexões. Saramago. Todos os Nomes.

***
Não estava mais lá. Amareleceu.
Os olhos vivos, onde foram parar?
O sorriso estudado, repetido, reprodutível sem demora, escondeu-se em que vão?
De que modo os acontecimentos imprimem marcas no rosto, alterando fisionomias e sorvendo, em carnívoras respirações, o arrebatamento que um dia esteve lá?

Imagem e corpo se desatam, mas os retratos devolvem, como bichos dilacerados, pedaços reconhecíveis de memória. Antes que se diluam pra sempre nos labirintos do esquecimento, a fotografia congela o que o tempo irremediavelmente desfaz.

Como um fio que pés desesperados insistem em reter, o retrato é ponte frágil com um passado já fora de alcance. É esperança de saborear, fora do tempo e para além dele, restos de gosto que sobrou na língua. Mas que, por ser nota ora apreensível, ora indecifrável, escapa pra sempre do nosso total entendimento.

O apetite de Saturno e a morte dos grandes amores

Penso nos grandes amores que morrem. Silenciosos. Sem gritos. A deixar-se engolir aos poucos pelo escuro incerto de mais um dia que vai... a desfazer-se na saliva corrosiva de Saturno - senhor do Tempo e da razão que perdemos.

Não há como não chorar pelos momentos idos, mastigados, triturados sem vacilo. Os dentes implacáveis de Saturno dilaceram a carne dos amores. Nem os filetes de memórias - notas trôpegas que ainda suscitam logínquas melodias - restam inteiros.

Esta é a parte mais triste. A espuma do esquecimento gela os nervos, e o último fio entre impulso e lembrança se desfaz. Mesmo correndo em sua direção, o impulso já não chega a tempo. A voz é débil, os braços não atingem mais a lembrança - que, solitária e cansada, acelera o passo e, já esquecida, alcança a próxima esquina.

***

"Entre mi amor y yo han de levantarse
trescientas noches como trescientas paredes
y el mar será una magia entre nosotros.

No habrá sino recuerdos.
Oh tardes merecidas por la pena,
noches esperanzadas de mirarte,
campos de mi camino, firmamento
que estoy viendo y perdiendo...
Definitiva como un mármol
entristecerá tu ausencia otras tardes".
Borges, J. L.

quarta-feira, 26 de março de 2008

Fios, fios e mais fios

Fios.

Entrelaçados. Desatrelados. Retorcidos.

Como fragmentos de silêncio ou filamentos humanos de dor.

Hiatos de linha. Frágeis pontes entre o desejo e o vácuo.

Chumaços de algodão,

A amortecer a queda. A vestir dores. A esconder, colorir

e alinhavar restos.

Ariadna: entre a tristeza e a saudade


Ariadne, no Museu do Prado

E Dioniso diz à Ariadne: "Tu tens as orelhas pequenas, tens as minhas orelhas, diz-lhes uma palavra prudente". Claro que não basta para trazer Ariadne de volta ao senso, razão porque ele, então, como o deus brincalhão que é, acrescenta: 'Por que é que as tuas orelhas não são ainda maiores?"


Deleuze, Gilles. O Mistério de Ariana. Adaptação.

terça-feira, 25 de março de 2008

Ariadne: resistências subterrâneas




"E foi sobre estes bancos de solo ainda mal consolidados, mistura incerta de terra e água, que se apressaram a proliferar os mangues - esta estranha vegetação capaz de viver dentro de água salgada, numa terrra frouxa, cosntantemente alagada. Agarrando-se com unhas e dentes a este solo para sobreviver, através de um sistema de raízes que são como garras fincadas profundamente no lodo e amparando-se, umas nas outras, para resistirem ao ímpeto das correntezas da maré e ao sopro forte dos ventos alíseos (...), os mangues foram pouco a pouco entrelaçando suas raízes e seus braços numa amorosa promiscuidade, e foram assim consolidadndo a sua vida e a vida do solo frouxo das coroas de lodo donde brotaram". Castro, Josué. Fome, p. 28

***

Ariadne. Quando a vi, foi como se tivesse me deparado, de surpresa, com um espelho. Tamanho o esforço em achá-la, a ela e seu labirinto.

Absorta em sua dor, Ariadne é uma incógnita. É a chave, o fio, a passagem que conduz à saída de uma arquitetura intrigante e estéril, que escapa à decifração. O labirinto é o mesmo e ainda outro. É repetição e ao mesmo tempo ilusão ótica - já que onde tudo parece igual, a surpresa não tarda. O labirinto é metáfora e golpe de vista, geometria de um demiurgo gozador.

Mas se Ariadne é o fio e a saída, ela é, também, a metáfora da alienação. Com olhos colados no passado, ela é a via que conduz os demais ao exterior, mas não pode livrar-se a si mesma. O chão que pisa é movediço. Sem saber que é anfíbia, e desconhecendo as sabedorias de almoxarifado que possui, mergulha na tristeza, vendo, sem reação, a partida de Teseu.

Não grita. Se desmancha por dentro. Deixa que a grama cresça, descuidada, nos vãos do seu corpo. Ariadne é pântano. Mistura incerta de água e terra. Visão incômoda do desleixo, ela é o retrato de seu próprio abandono.

Mas se os mangues são uma estranha vegetação capaz de viver em terra frouxa e alagada, Ariadne é esta estranha e resistente combinação, capaz de sobreviver aos ambientes mais inóspitos e hostis. Seus olhos congelados, colados na superfície hipnótica do ontem, escondem raízes vivas e férteis a se debaterem na face escura e opaca da lama.

Quem a vê, não diz que reage. Não vê que, num processo lento e incansável, ela desata seus próprios fios. Como uma tecelã de si mesma, Ariadne se refaz.

segunda-feira, 24 de março de 2008

O amor e a patologia do imaginário


"Por mais amores que possamos ter tido, assim como cada um de nós só tem uma maneira de amar, através de tantas pessoas que quisemos tão apaixonadamente conhecer, não terá cada um de nós ainda assim conhecido senão a si mesmo? (...) Mas se ninguém escapa a si mesmo nem pode jamais conhecer senão a si mesmo, se, ignorando tudo do outro, sempre podemos portanto supor tudo sobre ele, não será o ciúme a patologia do amor senão na medida em que o amor é a patologia do imaginário? [Poderíamos assim falar de] uma potência invasora e quase obsessional do imaginário, de uma invencível ilusão, que ele faz experimentar a cada novo amor, de poder enfim sair de si mesmo para entrar num outro coração como se entraria numa nova vida"

Grimaldi, Nicolas. O Ciúme: estudo sobre o imaginário proustiano, p. 7. Adaptação.

***

Voltei de Madrid pensando sobre os amores de nossa vida e os critérios de escolha que animam nossas relações. Peguei Grimaldi na prateleira assim como quem não quer nada, como quem só quer folhear um bom e enxuto livro para uma inspiração, e o pensamento veio de enxurrada. Grimaldi entende Proust e eu procuro entender Grimaldi. Sim, porque sua análise da teoria proustiana é de gelar os ossos. O amor que tende desde o princípio para o esquecimento e não para o fervor, como uma ampulheta virada. O amor como patologia do imaginário. O amor como passos na direção de si mesmo, como as empreitadas ingênuas de Narciso para mergulhar em suas próprias profundezas.

É isso que Grimaldi promete. Desvendar a razão do amor ser assim para Proust - uma espécie de maldição ou encantamento. De qualquer modo, doloroso mesmo é lidar com as máximas proustianas e vou aqui comentar uma delas: a insignificância da pessoa amada. Ou, melhor seria dizer, usando os termos de Grimaldi, a "desproporção entre a nulidade da pessoa amada e a imensidão do drama que ela ocasiona" de modo a seguir-se "a incompreensibilidade do amor para aqueles que, ignorando necessariamente sua causa, dele não conseguem ver mais que a irrisória ocasião" (p. 10).

Muito bem, a coisa é simples. Você ama, ainda que as razões não sejam claras e os mundos de ambos sejam rigorosamente diferentes - para não dizer dissonantes. Ainda que os parâmetros de mundo sejam antípodas, o que nos faz desaguar na segunda lei proustiana (e dela só falaremos na seqüência). Como o amor é Acontecimento, é ruptura na lógica do cotidiano, ele não tem compromisso com aquilo que nos é comum, que nos agrupa. O amor, portanto, não é o que nos une, mas o que nos separa. O que nos coloca em estado de encantamento, de uma quase possessão, capaz de nos tornar estranhos em terra pátria. E os outros pensam que vc está mesmo fora de si, porque o que vêem ou ouvem não parece justificar o caráter implacável e denso do que você julga sentir.

Um dia você mesmo irá percebê-lo e esta é a parte triste da história. Ou, dependendo de como a vemos, a parte oportuna da coisa toda. Triste porque não há encantamento que não se acabe. O tempo se encarrega de embotar as cores e comprometer a nitidez dos afetos, lembrando incomodamente que tudo que nasce tende a morrer. Claro que sempre há a possibilidade de que um condão desavisado toque nossas cabeças (ou a dos outros) em encontros futuros, mas, em princípio, o encantamento só conhece a linguagem do agora.

A parte boa de tudo isso é que todos os seres podem achar o bilhete premiado. Pelo menos assim presume Proust, já que nada, nenhuma qualidade transcendente, responde pela escolha que fazemos ou fazem de nós. O belo pode capturar o olhar, o desejo e a atenção, mas não garante ou mantém o encantamento. O encantamento é, assim, produto subterrâneo, que acontece nas vias sem acesso do inconsciente. Um nariz meio torto, um sorriso largo ou quase imperceptível, um jeito de mexer a cabeça ou as mãos... e cataploft... o amor fisgou.

Claro que se o amor foge à lógica da competição e se o que se ama não se explica, a experiência epifânica pode estar na próxima esquina ou no fim do mundo, à direita. Pode, como uma febre, chegar de sopetão. Ou, ainda, nunca chegar - semelhante aos unicórnios e outros bichos imaginários de que muito se fala, mas nunca se viu ou sentiu a presença.

Grimaldi pergunta o que é que se ama quando se ama, já que aquele a quem destinamos o afeto nada conta para a experiência do amor. Eu, à semelhança de Grenouille ou de Robert, insisto em uma pergunta que penso vir antes: que substância primordial, primitiva, explica o acontecimento do amor? O que nos atrai à próxima esquina, verte nossos olhos e dociliza nosso espírito?

Se este torpor que o inconsciente procura não puder mesmo ser reconhecido, se o segredo fizer parte da experiência do sublime, então, não tem jeito: caminharemos feito cegos à espera de uma epifania cuja substância desconheceremos. Forjaremos encontros e durações, sem saber que estamos mais uma vez nos perdendo, caminhando na direção contrária deste Outro que viria polvilhar nossa noite com estrelas de encantamento.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Grenouille I - vendo com as narinas


"Terrier tinha a impressão de que a criança o olhava com as narinas, o examinava sem complacência, mais implacavelmente do que poderia fazê-lo com o olhar, como se absorvesse pelo nariz algo que emanava de Terrier e que ele próprio era incapaz de reter ou dissimular... E Terrier sentiu-se repentinamente (...) a tresandar a suor e vinagre, a couve-roxa e a roupas sujas. Teve a sensação de se encontrar em toda a sua nudez e fealdade, perscrutado pelo o olhar de alguém que o fixava sem nada revelar de si. Era como se esta exploração olfactiva lhe atravessasse a pele e lhe devassasse o íntimo". Süskind, Paul. O Perfume, p. 23

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Verdade é que os sentidos nos traem mais do que as palavras. Há uma razão pra isso: as palavras são lentas e ariscas, tateando o solo antes de cair com segurança aos pés do interlocutor. Já os olhos não têm medo do improviso, saem na dianteira e revelam de imediato suas impressões.

Os olhos chegam onde as palavras não alcançam. E, audaciosos, amassam as palavras muito ensaiadas - agora descartáveis como o jornal de ontem. Perto do olhar, as palavras são rascunhos.

Basta ver que o amor não entra pela boca, mas, sim, pela retina. Um escritor polonês chegou mesmo a dizer, em um de seus contos, que o amor era listrado, marcado pela visão daquele que atravessou a retina pela primeira vez. Penso que se oftalmos fossem terapeutas, talvez conseguíssemos ir direto ao ponto. Ou melhor, ao risco. Aquele que, imperceptível, marcou nossas pupilas, alterando modos de ver e de dizer. Ou não dizer. Porque olhos também podem emudecer, voltar-se pra dentro e escapar à luz. Podem revolver passados e se perder nestes labirintos de tempo. Neste caso, só outros olhos, munidos de um fio ou funcionando como ponte, podem demovê-los do silêncio da escuridão.

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Mas se os olhos convidam, os cheiros quebram as resistências. Assim como certos gostos, os cheiros vêm do passado e, como tal, de lugares escuros e empoeirados da memória, onde sequer sabemos se existe vida. Sabores e aromas funcionam, assim, como uma espécie de condão - materializam pessoas, encontros, histórias. Onde a vida pôs um ponto, os sabores e os cheiros adicionam vírgulas - oásis de imaginação em um deserto de certezas. Vírgula-miragem, é verdade, já que no momento seguinte a memória já não está lá.

Os cheiros revelam. Comunicam no silêncio como os olhos. Mas são ainda mais rápidos do que eles. Diferente da visão, o olfato acessa subterrâneos que a consciência não vê. Quando os olhos se perdem, são os cheiros que trazem o invisível à superfície. Grenouille descobre muito cedo esta habilidade dos cheiros e por isso o tomam por um vidente, capaz de dizer o futuro das coisas e das pessoas. Mas Grenouille não vê nada. Apenas conversa com os ventos. Deixa que eles tragam as almas dos vivos, as notas que retém suas presenças, mesmo quando já estão mortos.

Não somos diferentes, tentando requentar momentos natimortos e enfrascar suas essências para que o sublime perdure. Como uma espécie de câmara escura, nossos olhos silenciam e se fecham, para que os cheiros, mais impetuosos e imprudentes, eternizem trechos arranhados da nossa história. Antes que se percam na escuridão morna do esquecimento. Os cheiros trazem os nossos fantasmas para a sala de visitas. Depois de um tempo, eles, os fantasmas, se cansam e vão. Ficamos sós, em trânsito, entre a vigílio e o sono. Entre o mundo dos vivos e o reino dos mortos.

Grenouille acredita inocentemente poder fixar cheiros e congelar sensações, adormecer o tempo e manter em suspensa a experiência estética da beleza e do perfeito. Porque é sabido que a experiência de contato com sublime redime os espíritos mais retráteis. Redime as cicatrizes, o corpo imperfeito, as rugas e feridas internas que o corpo engoliu. De modo que o contato com o sublime expõe gengivas, vísceras - o melhor e o pior de cada um de nós, perdidos e assustados diante do miraculoso.

E o miraculoso na vida-nossa-de-cada-dia é o amor. Convite irrecusável que tira o chão dos pés . Que promete o céu e o inferno juntos. Por isso, Robert, em Os Cinco Sentidos, procura um a um de seus ex-amantes pra sentir-lhes o cheiro, na expectativa de saber se algum deles alguma vez o amou. Por isso, Rona, a confeiteira, escapa enquanto pode da experiência dos sabores. Sabe que em algum momento vai amargar o gosto da decepção. E amarga. Não porque o desencontro estivesse em seu caminho. Mas porque ele crescia debaixo da sua pele.

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E com a pele voltamos ao início da conversa, quando o anti-herói Grenouille inicia sua aventura em direção ao enigmático e estranho cheiro das coisas e das pessoas. Terrier pressente que Grenouille vê com as narinas. De minha parte, arriscaria dizer que as pessoas vêem com o tato. E que nada devassa mais um indivíduo do que o contato nervoso dos dedos.

Se estivesse no lugar de Terrier, não teria medo daquele que pode me ver com o nariz. Mas com certeza daquele que pudesse ler, nos códigos cifrados do meu corpo, as tristezas, os desencontros, os medos encapsulados. Não é preciso ver. As feridas - de corpo e de alma - brotam na superfície como escritas em braille.

sexta-feira, 14 de março de 2008

Em busca do cheiro perdido



Na obra "Em Busca do Tempo Perdido", Proust nos mostra uma terrível realidade: o passado, ainda que sabores logínquos o tragam de volta, não permanece no palato por muito tempo. Desembaraça-se da língua como palavra que já foi. Lembrança despetalada da memória a fertilizar outro chão. O do inconsciente.

Mas se o gosto nos dá a esperança ingênua de que vamos reter a experiência cuja lembrança nos amolece de amor, é para, no minuto seguinte, descobrir que ele não mais está lá. Foi perdendo os sentidos, em suspiros inaudíveis. Foi deixando a língua, o corpo, a memória. Saiu pela porta dos fundos.

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Pior do que o gosto, que um dia abandona a língua sem que ela dê por conta disso, são os cheiros. Um aroma chega - e bem mais rápido - onde o gosto não alcança. Prende a memória como um marcador de livro. Porque chega mais rápido e não se deixa deter, o cheiro desarma. Se espalha. Atravessa as vísceras da memória. Volátil, nunca sabemos onde se esconde. Até que um dia, sorrateiro como um gato, volta pela porta da frente, como se nunca tivesse ido.

***

Vendo o filme sobre o perfumista Grenouille, que matava suas vítimas para extrair delas o aroma da beleza, sigo as pistas deixadas no ar. Grenouille nasce no meio do lixo e da putrefação da matéria. Nasce com a fantástica capacidade de reter cheiros. No seu primeiro encontro com a beleza, não consegue suportá-la e, sem entender, mata. Desde então traz para si a missão de nunca mais perder um aroma - de reter o que é, por sua natureza, efêmero. Noite e dia, tenta produzir com restos humanos, em uma alquimia macabra, o elixir da beleza e da perfeição. Mas Grenoille se engana na sua ingênua crueldade. A beleza pode ser reproduzida, mas não a experiência que torna o um, único. A beleza pode ser retida. O amor que se sente ou provoca, não.

A experiência dos primeiros afetos - e dos primeiros cheiros - orienta boa parte das buscas humanas. Não é à toa que Grenouille volta à cloaca imunda de onde saiu e é nela que dá seu último suspiro. Desta vez untado com o cheiro que nunca teve. Embebido em perfume - o cheiro enfeitiçador da beleza pura - Grenouille é devorado por homens e mulheres que passam.

"O perfume" é um filme forte. Requer estômago pra ver. Porque Grenouille somos nós. Nós que adoecemos de melancolia. Nós que enlouquecemos em busca do aroma perdido. Do cheiro original que nos liga, como um cordão, às primeiras respirações. Nós que perseguimos o amor, gota a gota, para vê-lo ir-se pelos ares como algo que jamais poderia ser retido.

domingo, 9 de março de 2008

"Agora você é a Hari". E esta foi a maior declaração de amor que alguém pôde dizer...


Meia-noite em Portugal. Quase nove no Brasil. Eu penso sobre as semelhanças. Aquilo que confunde original e cópia, verdade e possibilidade, amor e ilusão. Desde que cheguei aqui tenho tido ímpetos de escrever. Tanto melhor, já que vida e representação juntas caminham.

Acabo de ver um filme daqueles hollywoodianos. Prefiro não comentá-lo. Mas ele me levou a outro, sobre o qual já escrevi no passado. Solaris. Grande filme, como aliás os que lidam bem com o tempo esticado de Tarkovsky hão de reconhecer.

Mas Solaris não é só mais um filme genial. Ele fala do encontro entre cópia e original no único lugar possível - o inconsciente. A Hari que morreu e a Hari possível, feita de neutrinos. Claro que a Hari de neutrinos ganha vida própria e rouba a cena. Quem duvidaria que a representação pudesse nos tornar mais felizes? A edição do mundo sempre parece melhor. E se não é integralmente, pelo menos é a ponte possível que nos liga ao passado. Este sim - como as madalenas proustianas ou como os torrões de açúcar de Godard - a dissolver-se sem direito a minutos extras na despedida. Curioso mesmo é quando os neutrinos roubam a cena de um passado sagrado...

Não escolhi Solaris por acaso. O filme hollywoodiano me trouxe à memória algo em Solaris que vale a pena comentar. Uma declaração de amor, daquelas que a gente guarda e se emociona. Diante da imagem da mulher, que o perturba como um sonho engasgado dia após dia, Kelvin se apaixona pelo improvável. Entre os neutrinos que tornam a representação possível e a lembrança da mulher morta, Kelvin escolhe a vida. É disso que Solaris fala. Do amor que, inadvertidamente, acontece. Dos encontros que, improváveis, mudam nossa rota. Da semelhança que gera a diferença. E da diferença que gera o encontro.

Diante do improvável e das crises de identidade de Hari - não a de verdade, mas, sim, a de neutrinos -, ninguém imaginaria que Kelvin, depois de tanto resistir respondesse à amada: - Você se engana. Agora você é a Hari.

Não há garantias. O amor, às vezes, nos pega na esquina.

Sabedorias no almoxarifado


É uma vergonha dizer isso, mas eu nunca li decentemente Adélia Prado. Mal começava e me dava uma coisa... Parava violentamente alguns minutos depois.

Mas um dia eu dei com um livro - inacabado como todos os outros - que me deixou uma sensação de necessidade. Trouxe-o comigo para Coimbra. Tudo é árido por aqui nesta época do ano. Falta descobrir se é coisa de época ou se este é o destino da relação com a cidade. Creio que não, de modo que as primeiras folhas me solicitam que espere um pouco mais de tempo. Os ânimos se amansam e o sorriso aparece.

Mas voltando ao livro da Adélia. Bem, o título talvez seja evidente: - Quero minha mãe. Eu quero a minha de volta faz tempo e, olhando a história bem, tenho razões para evitar este livro. A presença dos mortos e o comércio com eles, apesar de todas as teorias simpáticas de Roberto Da Matta, sempre me saem ao paladar como cubos de açúcar. Depois que começam a se desfazer, estão em toda a parte do café, mas já não é possível vê-los em parte alguma. E somos seres acostumados à presença - o que está longe dos olhos, traiçoeiramente, vai ficando longe do convívio, para não dizer do coração (e tremo só de pensar no que digo). O convívio é o que, cruelmente, acaba determinando o destino dos laços. Queria tanto que não fosse assim...

Depois da ida, a chegada nunca será a mesma. As pessoas são outras. A conversa pode parecer requentada. O amor pode parecer perdido. Entremundos. Ou como o saco de ossos que certa personagem de Cem Anos de Solidão enterrou por equívoco na parede. A ausência de carne a cobrar nossa atenção.

Enquanto os ossos dos meus inúmeros fantasmas chacoalham na parede, eu me lembro do que disse a Adélia Prado - mais uma destas presenças literárias e fantasmagóricas da minha vida:

"Tinha vantagens não saber do inconsciente, vinha tudo de fora, maus pensamentos, tentações, desejos. Contudo, ficar sabendo foi melhor, estou mais densa, tenho âncora, paro em pé por mais tempo. De vez em quando ainda fico oca, o corpo hostil e Deus bravo. Passa logo. Como um pato sabe nadar sem saber, sei sabendo que, se for preciso, na hora H nado com desenvoltura. Guardo sabedorias no almoxarifado"

"Que as vidas são como os quadros, precisaremos sempre de olhá-las quatro passos atrás, mesmo se um dia chegámos a tocar-lhes a pele, a sentir-lhes o cheiro, a provar-lhes o gosto"

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"Quem somos nós para falar de conseqüências, se da fila interminável delas que incessantemente vem caminhando na nossa direcção apenas podemos ver a primeira, Significa isso que algo pode acontecer ainda, Algo, não, tudo, Não compreendo, Só porque vivemos absortos é que não reparamos que o que nos vai acontecendo deixa intacto, em cada momento, o que nos pode acontecer, Quer isso dizer que o que pode acontecer se vai regenerando constantemente, Não só se regenera como se multiplica, basta que comparemos dois dias seguidos, Nunca pensei que fosse assim, São coisas que só os angustiados conhecem bem"

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"Em rigor, não tomamos decisões, são as decisões que nos tomam a nós"



Sr. José pensando alto. Ou nem tão alto assim. Saramago, José. Todos os Nomes.
"De facto não há nada que mais canse uma pessoa que ter de lutar, não com o seu próprio espírito, mas com uma abstracção"
Saramago, José. Todos os Nomes, p. 27

Abandonando figos na saída de Naxos


Dizem que toda borboleta tem seu tempo de lagarta. Espero que o meu passe rápido. Ariadne me acena com a mão de sua imóvel condição em Naxos e, desta vez, sou eu que escolho partir da ilha em busca do mar. Sylvia também me olha assustada. Já não quero tanto seus figos roxos, sempre prestes a cair, maduros demais. Quero o agora com suas incertezas. É hora de acenar para Deméter e partilhar os grãos de romã. Ou simplesmente aceitar que as romãs são um rito. Não há como evitá-las. Mesmo quando sangra. Por dentro e por fora.


Não escolho deixar Ariadne e Sylvia e Deméter sem uma certa tristeza. São partes inflamadas de mim. Como diz Ricardo Reis, "Em tudo que olhei fiquei em parte"... Também ele devo empacotar e esquecer na gaveta. Catucar feridas é adiar a vida e justificar o não-momento.


Que as horas boas e más fiquem no seu lugar, coladas no tempo, como moscas. É tempo de lançar novas sementes e colher poesia nova. Que venham as tempestades. Não tenho medo delas, já que sempre lançam água em território adormecido. Também não tenho medo de Naxos. Nem de figos ou romãs. Que passem todos e eu possa celebrar, no dia seguinte, a chegada de mais uma manhã.


sábado, 8 de março de 2008

Edward Hopper: Mundos de Vidro e Solidão Humana




O texto abaixo foi publicado em um site há tempos atrás... Resolvi reavivá-lo... Para os que preferirem o site, lá vai... http://www.ocisco.net/lucluc01.htm

Escrevi em 2003, mas eu o reescreveria hoje, se fosse o caso.

Edward Hopper: Mundos de vidro e solidão humana

A primeira vez que vi uma tela de Hopper foi estampada na capa de um livro de contos. Curiosamente, eram contos sobre a solidão urbana - tema que atravessa quase que a totalidade de seus quadros. Edward Hopper, pintor americano, foi um dos maiores artistas do século XX e sua obra é um espelho evidente do sentimento de solidão do homem contemporâneo. Mesmo acompanhado, o homem parece incrivelmente só. Em diálogos mudos, ele fixa os olhos onde seja mais confortável sonhar, o que significa que estes olhos repousam sobre o que não pode devolver uma resposta, mas apenas refletir e revolver as falas internas. Nunca os olhos do seu semelhante. Nunca aquilo que poderá ampliar a sua carga de frustração.

As telas de Hopper falam deste homem e da sua quase freqüente impossibilidade de se comunicar. A não-relação é um modo menos dolorido de conviver com as frustrações do mundo. Um dos quadros mais conhecidos de Hopper, Nighthawks (1942), mostra este sentimento de solidão tão encarnado no espírito das cidades: numa espécie de bar-aquário, pessoas anônimas atravessam a noite. Estão próximas, mas não se falam - cada uma delas perdida em seu mundo particular. Esta alienação de mundo, aliás, aparece em várias telas de Hopper: pessoas que compartilham o espaço público, mas que se fecham seguramente em seus universos individuais - são olhos perdidos no ontem, ora estacionados na lembrança de um momento bom que já não existe, ora na dúvida do que ainda não deixou de ser. O presente não exige olhos. Exige, antes, a capacidade automática de repetir e pupilas coladas no passado para poder suportar os novos ventos que sopram.

Room in New York (1932), por exemplo, fala desta necessidade do indivíduo alienar-se na repetição dos gestos cotidianos. Um casal tipicamente urbano, experimenta o (des)conforto da intimidade: ele lê o jornal e ela dedilha alguma coisa no piano. O modo como a mulher se senta - com o corpo mais voltado para o marido ausente do que para o piano - sugere o quanto de espera há neste ato... como se a mulher pudesse sufocar o ruído das suas dúvidas com os sons das teclas. É curioso observar que a tensão e as inquietações dos personagens hopperianos atravessem a tela, do mesmo modo que os olhares destes homens e mulheres feitos de tinta costumam atravessar os vidros das janelas.

Janelas e portas, aliás, são elementos freqüentes em Hopper. É comum encontrarmos, em sua obra, telas em que retinas femininas dialogam com as superfícies refletoras das janelas. Constituem, a meu ver, uma representação bastante exata da solidão. Não por evocar o universo feminino, mas porque Hopper parece ter sido muito preciso ao pintar este conjunto de quadros enfocando a solidão do 'um', sendo impossível manter a postura de espectador diante deles. Nestas telas, onde a figura feminina aparece sozinha, o ambiente pouco importa. Seja numa cafeteria, seja num quarto privativo, é como se Hopper evidenciasse a alienação, transformando o espaço num detalhe menos importante. Lentes de aumento repousam na expressão da mulher, ela mesma alienada em relação ao ambiente em que se encontra. Dois quadros aqui se destacam e merecem um olhar mais atento. Automat, (1927) e Room in Brooklyn (1932). No primeiro, a mulher está sozinha em uma mesa de restaurante. Seu olhar está imerso na superfície refletora do café e ela parece nitidamente perdida em seus pensamentos. É noite lá fora e lâmpadas refletidas na janela dão a noção de profundidade do ambiente. Conseqüentemente, ampliam o sentido e a carga de solidão. Observando mais atentamente os olhos da mulher, uma surpresa. Eles podem nos dar a sensação de que ela os conserva abaixados e de que o preto que aparece na tela provém dos seus cílios. Mas os olhos da mulher também podem nos remeter à estranha idéia de pupilas vazias, como se a mulher não tivesse outra alternativa senão revolver a si mesma... senão refletir sua figura e seus sonhos na superfície não-comunicante do café que não bebe.

O outro quadro mencionado, Room in Brooklyn, mostra uma mulher sentada diante de uma janela. O sol atravessa o vidro e toca sua figura. Toca sua figura, mas não a sua pele; exceção à nuca - única parte visível da mulher no quadro, já que seu corpo está totalmente protegido pelas roupas. Desta figura nada sabemos, apenas que olha, pela janela, o mundo lá fora. Pelo modo como ela meneia a cabeça - Hopper fala através dos pequenos gestos humanos - parece que conserva uma curiosidade desejante e um sentimento de impotência diante do vidro. A mulher esconde a sua dor, mas alguma coisa dela pode ser identificada na visão parcial desta nuca nua que se dobra ao mundo externo. Ela se esconde, mas ainda se deixa ver, mesmo que por um nasgo de pele.

Este quadro de Hopper parece dialogar maravilhosamente com o universo literário de Sylvia Plath, sobretudo com o seu romance autobiográfico A Redoma de Vidro. Neste romance, Esther Greenwood - o alter-ego de Sylvia - diz: "Vi minha vida se desenrolar diante de mim como o conto da figueira que um dia havia lido. Da ponta de cada ramo, um gordo figo roxo me acenava (...) Impossibilitada de escolher, vi um a um caírem apodrecidos aos meus pés". Acredito que este quadro de Hopper fala um pouco deste sentimento: ver o mundo passar do outro lado da rua. O 'estar de costas' representa, de certo modo, uma recusa do mundo no qual se está - como se fosse possível ficar 'entremundos', entre aquele em que se vive (e que se recusa) e o outro a que se aspira (mas em relação ao qual não se consegue romper a redoma). Para os que pensam que Hopper tem uma visão niilista do mundo, cabe uma segunda observação de seus quadros. Hopper evidencia sim nossos sentimentos mais internos - de impotência diante do mundo, de solidão silenciosa, de frustração e dúvida -, mas também instiga, pelo incômodo que provoca, um desejo de quebrar o vidro das superfícies refletoras. Suas figuras, olhando através de vidros diurnos, sequer podem ver a si mesmas, perdidas que estão nas suas caixas de memória. Hopper convida, com a tensão de seus quadros, à reflexão sobre o modo de vida contemporâneo e à ruptura destes aquários de vidro em que invariavelmente nos encontramos - como no quadro Nighthawks. A mensagem do pintor é clara: é preciso atravessá-los... e reinventar uma comunicação possível, se ainda quisermos preencher as nossas já tão noturnas pupilas vazias.