segunda-feira, 24 de março de 2008

O amor e a patologia do imaginário


"Por mais amores que possamos ter tido, assim como cada um de nós só tem uma maneira de amar, através de tantas pessoas que quisemos tão apaixonadamente conhecer, não terá cada um de nós ainda assim conhecido senão a si mesmo? (...) Mas se ninguém escapa a si mesmo nem pode jamais conhecer senão a si mesmo, se, ignorando tudo do outro, sempre podemos portanto supor tudo sobre ele, não será o ciúme a patologia do amor senão na medida em que o amor é a patologia do imaginário? [Poderíamos assim falar de] uma potência invasora e quase obsessional do imaginário, de uma invencível ilusão, que ele faz experimentar a cada novo amor, de poder enfim sair de si mesmo para entrar num outro coração como se entraria numa nova vida"

Grimaldi, Nicolas. O Ciúme: estudo sobre o imaginário proustiano, p. 7. Adaptação.

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Voltei de Madrid pensando sobre os amores de nossa vida e os critérios de escolha que animam nossas relações. Peguei Grimaldi na prateleira assim como quem não quer nada, como quem só quer folhear um bom e enxuto livro para uma inspiração, e o pensamento veio de enxurrada. Grimaldi entende Proust e eu procuro entender Grimaldi. Sim, porque sua análise da teoria proustiana é de gelar os ossos. O amor que tende desde o princípio para o esquecimento e não para o fervor, como uma ampulheta virada. O amor como patologia do imaginário. O amor como passos na direção de si mesmo, como as empreitadas ingênuas de Narciso para mergulhar em suas próprias profundezas.

É isso que Grimaldi promete. Desvendar a razão do amor ser assim para Proust - uma espécie de maldição ou encantamento. De qualquer modo, doloroso mesmo é lidar com as máximas proustianas e vou aqui comentar uma delas: a insignificância da pessoa amada. Ou, melhor seria dizer, usando os termos de Grimaldi, a "desproporção entre a nulidade da pessoa amada e a imensidão do drama que ela ocasiona" de modo a seguir-se "a incompreensibilidade do amor para aqueles que, ignorando necessariamente sua causa, dele não conseguem ver mais que a irrisória ocasião" (p. 10).

Muito bem, a coisa é simples. Você ama, ainda que as razões não sejam claras e os mundos de ambos sejam rigorosamente diferentes - para não dizer dissonantes. Ainda que os parâmetros de mundo sejam antípodas, o que nos faz desaguar na segunda lei proustiana (e dela só falaremos na seqüência). Como o amor é Acontecimento, é ruptura na lógica do cotidiano, ele não tem compromisso com aquilo que nos é comum, que nos agrupa. O amor, portanto, não é o que nos une, mas o que nos separa. O que nos coloca em estado de encantamento, de uma quase possessão, capaz de nos tornar estranhos em terra pátria. E os outros pensam que vc está mesmo fora de si, porque o que vêem ou ouvem não parece justificar o caráter implacável e denso do que você julga sentir.

Um dia você mesmo irá percebê-lo e esta é a parte triste da história. Ou, dependendo de como a vemos, a parte oportuna da coisa toda. Triste porque não há encantamento que não se acabe. O tempo se encarrega de embotar as cores e comprometer a nitidez dos afetos, lembrando incomodamente que tudo que nasce tende a morrer. Claro que sempre há a possibilidade de que um condão desavisado toque nossas cabeças (ou a dos outros) em encontros futuros, mas, em princípio, o encantamento só conhece a linguagem do agora.

A parte boa de tudo isso é que todos os seres podem achar o bilhete premiado. Pelo menos assim presume Proust, já que nada, nenhuma qualidade transcendente, responde pela escolha que fazemos ou fazem de nós. O belo pode capturar o olhar, o desejo e a atenção, mas não garante ou mantém o encantamento. O encantamento é, assim, produto subterrâneo, que acontece nas vias sem acesso do inconsciente. Um nariz meio torto, um sorriso largo ou quase imperceptível, um jeito de mexer a cabeça ou as mãos... e cataploft... o amor fisgou.

Claro que se o amor foge à lógica da competição e se o que se ama não se explica, a experiência epifânica pode estar na próxima esquina ou no fim do mundo, à direita. Pode, como uma febre, chegar de sopetão. Ou, ainda, nunca chegar - semelhante aos unicórnios e outros bichos imaginários de que muito se fala, mas nunca se viu ou sentiu a presença.

Grimaldi pergunta o que é que se ama quando se ama, já que aquele a quem destinamos o afeto nada conta para a experiência do amor. Eu, à semelhança de Grenouille ou de Robert, insisto em uma pergunta que penso vir antes: que substância primordial, primitiva, explica o acontecimento do amor? O que nos atrai à próxima esquina, verte nossos olhos e dociliza nosso espírito?

Se este torpor que o inconsciente procura não puder mesmo ser reconhecido, se o segredo fizer parte da experiência do sublime, então, não tem jeito: caminharemos feito cegos à espera de uma epifania cuja substância desconheceremos. Forjaremos encontros e durações, sem saber que estamos mais uma vez nos perdendo, caminhando na direção contrária deste Outro que viria polvilhar nossa noite com estrelas de encantamento.

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