sábado, 8 de março de 2008

Edward Hopper: Mundos de Vidro e Solidão Humana




O texto abaixo foi publicado em um site há tempos atrás... Resolvi reavivá-lo... Para os que preferirem o site, lá vai... http://www.ocisco.net/lucluc01.htm

Escrevi em 2003, mas eu o reescreveria hoje, se fosse o caso.

Edward Hopper: Mundos de vidro e solidão humana

A primeira vez que vi uma tela de Hopper foi estampada na capa de um livro de contos. Curiosamente, eram contos sobre a solidão urbana - tema que atravessa quase que a totalidade de seus quadros. Edward Hopper, pintor americano, foi um dos maiores artistas do século XX e sua obra é um espelho evidente do sentimento de solidão do homem contemporâneo. Mesmo acompanhado, o homem parece incrivelmente só. Em diálogos mudos, ele fixa os olhos onde seja mais confortável sonhar, o que significa que estes olhos repousam sobre o que não pode devolver uma resposta, mas apenas refletir e revolver as falas internas. Nunca os olhos do seu semelhante. Nunca aquilo que poderá ampliar a sua carga de frustração.

As telas de Hopper falam deste homem e da sua quase freqüente impossibilidade de se comunicar. A não-relação é um modo menos dolorido de conviver com as frustrações do mundo. Um dos quadros mais conhecidos de Hopper, Nighthawks (1942), mostra este sentimento de solidão tão encarnado no espírito das cidades: numa espécie de bar-aquário, pessoas anônimas atravessam a noite. Estão próximas, mas não se falam - cada uma delas perdida em seu mundo particular. Esta alienação de mundo, aliás, aparece em várias telas de Hopper: pessoas que compartilham o espaço público, mas que se fecham seguramente em seus universos individuais - são olhos perdidos no ontem, ora estacionados na lembrança de um momento bom que já não existe, ora na dúvida do que ainda não deixou de ser. O presente não exige olhos. Exige, antes, a capacidade automática de repetir e pupilas coladas no passado para poder suportar os novos ventos que sopram.

Room in New York (1932), por exemplo, fala desta necessidade do indivíduo alienar-se na repetição dos gestos cotidianos. Um casal tipicamente urbano, experimenta o (des)conforto da intimidade: ele lê o jornal e ela dedilha alguma coisa no piano. O modo como a mulher se senta - com o corpo mais voltado para o marido ausente do que para o piano - sugere o quanto de espera há neste ato... como se a mulher pudesse sufocar o ruído das suas dúvidas com os sons das teclas. É curioso observar que a tensão e as inquietações dos personagens hopperianos atravessem a tela, do mesmo modo que os olhares destes homens e mulheres feitos de tinta costumam atravessar os vidros das janelas.

Janelas e portas, aliás, são elementos freqüentes em Hopper. É comum encontrarmos, em sua obra, telas em que retinas femininas dialogam com as superfícies refletoras das janelas. Constituem, a meu ver, uma representação bastante exata da solidão. Não por evocar o universo feminino, mas porque Hopper parece ter sido muito preciso ao pintar este conjunto de quadros enfocando a solidão do 'um', sendo impossível manter a postura de espectador diante deles. Nestas telas, onde a figura feminina aparece sozinha, o ambiente pouco importa. Seja numa cafeteria, seja num quarto privativo, é como se Hopper evidenciasse a alienação, transformando o espaço num detalhe menos importante. Lentes de aumento repousam na expressão da mulher, ela mesma alienada em relação ao ambiente em que se encontra. Dois quadros aqui se destacam e merecem um olhar mais atento. Automat, (1927) e Room in Brooklyn (1932). No primeiro, a mulher está sozinha em uma mesa de restaurante. Seu olhar está imerso na superfície refletora do café e ela parece nitidamente perdida em seus pensamentos. É noite lá fora e lâmpadas refletidas na janela dão a noção de profundidade do ambiente. Conseqüentemente, ampliam o sentido e a carga de solidão. Observando mais atentamente os olhos da mulher, uma surpresa. Eles podem nos dar a sensação de que ela os conserva abaixados e de que o preto que aparece na tela provém dos seus cílios. Mas os olhos da mulher também podem nos remeter à estranha idéia de pupilas vazias, como se a mulher não tivesse outra alternativa senão revolver a si mesma... senão refletir sua figura e seus sonhos na superfície não-comunicante do café que não bebe.

O outro quadro mencionado, Room in Brooklyn, mostra uma mulher sentada diante de uma janela. O sol atravessa o vidro e toca sua figura. Toca sua figura, mas não a sua pele; exceção à nuca - única parte visível da mulher no quadro, já que seu corpo está totalmente protegido pelas roupas. Desta figura nada sabemos, apenas que olha, pela janela, o mundo lá fora. Pelo modo como ela meneia a cabeça - Hopper fala através dos pequenos gestos humanos - parece que conserva uma curiosidade desejante e um sentimento de impotência diante do vidro. A mulher esconde a sua dor, mas alguma coisa dela pode ser identificada na visão parcial desta nuca nua que se dobra ao mundo externo. Ela se esconde, mas ainda se deixa ver, mesmo que por um nasgo de pele.

Este quadro de Hopper parece dialogar maravilhosamente com o universo literário de Sylvia Plath, sobretudo com o seu romance autobiográfico A Redoma de Vidro. Neste romance, Esther Greenwood - o alter-ego de Sylvia - diz: "Vi minha vida se desenrolar diante de mim como o conto da figueira que um dia havia lido. Da ponta de cada ramo, um gordo figo roxo me acenava (...) Impossibilitada de escolher, vi um a um caírem apodrecidos aos meus pés". Acredito que este quadro de Hopper fala um pouco deste sentimento: ver o mundo passar do outro lado da rua. O 'estar de costas' representa, de certo modo, uma recusa do mundo no qual se está - como se fosse possível ficar 'entremundos', entre aquele em que se vive (e que se recusa) e o outro a que se aspira (mas em relação ao qual não se consegue romper a redoma). Para os que pensam que Hopper tem uma visão niilista do mundo, cabe uma segunda observação de seus quadros. Hopper evidencia sim nossos sentimentos mais internos - de impotência diante do mundo, de solidão silenciosa, de frustração e dúvida -, mas também instiga, pelo incômodo que provoca, um desejo de quebrar o vidro das superfícies refletoras. Suas figuras, olhando através de vidros diurnos, sequer podem ver a si mesmas, perdidas que estão nas suas caixas de memória. Hopper convida, com a tensão de seus quadros, à reflexão sobre o modo de vida contemporâneo e à ruptura destes aquários de vidro em que invariavelmente nos encontramos - como no quadro Nighthawks. A mensagem do pintor é clara: é preciso atravessá-los... e reinventar uma comunicação possível, se ainda quisermos preencher as nossas já tão noturnas pupilas vazias.


Sem comentários: