domingo, 9 de março de 2008

Sabedorias no almoxarifado


É uma vergonha dizer isso, mas eu nunca li decentemente Adélia Prado. Mal começava e me dava uma coisa... Parava violentamente alguns minutos depois.

Mas um dia eu dei com um livro - inacabado como todos os outros - que me deixou uma sensação de necessidade. Trouxe-o comigo para Coimbra. Tudo é árido por aqui nesta época do ano. Falta descobrir se é coisa de época ou se este é o destino da relação com a cidade. Creio que não, de modo que as primeiras folhas me solicitam que espere um pouco mais de tempo. Os ânimos se amansam e o sorriso aparece.

Mas voltando ao livro da Adélia. Bem, o título talvez seja evidente: - Quero minha mãe. Eu quero a minha de volta faz tempo e, olhando a história bem, tenho razões para evitar este livro. A presença dos mortos e o comércio com eles, apesar de todas as teorias simpáticas de Roberto Da Matta, sempre me saem ao paladar como cubos de açúcar. Depois que começam a se desfazer, estão em toda a parte do café, mas já não é possível vê-los em parte alguma. E somos seres acostumados à presença - o que está longe dos olhos, traiçoeiramente, vai ficando longe do convívio, para não dizer do coração (e tremo só de pensar no que digo). O convívio é o que, cruelmente, acaba determinando o destino dos laços. Queria tanto que não fosse assim...

Depois da ida, a chegada nunca será a mesma. As pessoas são outras. A conversa pode parecer requentada. O amor pode parecer perdido. Entremundos. Ou como o saco de ossos que certa personagem de Cem Anos de Solidão enterrou por equívoco na parede. A ausência de carne a cobrar nossa atenção.

Enquanto os ossos dos meus inúmeros fantasmas chacoalham na parede, eu me lembro do que disse a Adélia Prado - mais uma destas presenças literárias e fantasmagóricas da minha vida:

"Tinha vantagens não saber do inconsciente, vinha tudo de fora, maus pensamentos, tentações, desejos. Contudo, ficar sabendo foi melhor, estou mais densa, tenho âncora, paro em pé por mais tempo. De vez em quando ainda fico oca, o corpo hostil e Deus bravo. Passa logo. Como um pato sabe nadar sem saber, sei sabendo que, se for preciso, na hora H nado com desenvoltura. Guardo sabedorias no almoxarifado"

1 comentário:

Sergio Celane disse...

As pessoas, com certeza, serão outras. Mais velhas, mais sábias, mais doloridamente lapidadas pelo senhor das horas. Isso não as torna melhor? Sempre é possível buscar o encantamento do cristal lapidado olhando pela faceta que mais brinca com a luz.
Estarei aqui. Lapidado. Esperando seus olhos que sei que sabem ver pelo melhor ângulo. E as conversas requentadas terão o sabor inequívoco das horas em que sabemos ser felizes, só pela troca que acalenta e repõe energias extraviadas. Só porque sabemos muito bem um ao outro.
Amo você sem prazo de validade, viu?
Beijãozão!!!