domingo, 30 de março de 2008

Sparagmos I - os bichos dilacerados da memória


"as velhas fotografias enganam muito, dão-nos a ilusão de que estamos vivos nelas, e não é certo, a pessoa para quem estamos a olhar já não existe, e ela, se pudesse ver-nos, não se reconheceria em nós"
Sr. José em suas inúmeras reflexões. Saramago. Todos os Nomes.

***
Não estava mais lá. Amareleceu.
Os olhos vivos, onde foram parar?
O sorriso estudado, repetido, reprodutível sem demora, escondeu-se em que vão?
De que modo os acontecimentos imprimem marcas no rosto, alterando fisionomias e sorvendo, em carnívoras respirações, o arrebatamento que um dia esteve lá?

Imagem e corpo se desatam, mas os retratos devolvem, como bichos dilacerados, pedaços reconhecíveis de memória. Antes que se diluam pra sempre nos labirintos do esquecimento, a fotografia congela o que o tempo irremediavelmente desfaz.

Como um fio que pés desesperados insistem em reter, o retrato é ponte frágil com um passado já fora de alcance. É esperança de saborear, fora do tempo e para além dele, restos de gosto que sobrou na língua. Mas que, por ser nota ora apreensível, ora indecifrável, escapa pra sempre do nosso total entendimento.

Sem comentários: