segunda-feira, 17 de março de 2008

Grenouille I - vendo com as narinas


"Terrier tinha a impressão de que a criança o olhava com as narinas, o examinava sem complacência, mais implacavelmente do que poderia fazê-lo com o olhar, como se absorvesse pelo nariz algo que emanava de Terrier e que ele próprio era incapaz de reter ou dissimular... E Terrier sentiu-se repentinamente (...) a tresandar a suor e vinagre, a couve-roxa e a roupas sujas. Teve a sensação de se encontrar em toda a sua nudez e fealdade, perscrutado pelo o olhar de alguém que o fixava sem nada revelar de si. Era como se esta exploração olfactiva lhe atravessasse a pele e lhe devassasse o íntimo". Süskind, Paul. O Perfume, p. 23

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Verdade é que os sentidos nos traem mais do que as palavras. Há uma razão pra isso: as palavras são lentas e ariscas, tateando o solo antes de cair com segurança aos pés do interlocutor. Já os olhos não têm medo do improviso, saem na dianteira e revelam de imediato suas impressões.

Os olhos chegam onde as palavras não alcançam. E, audaciosos, amassam as palavras muito ensaiadas - agora descartáveis como o jornal de ontem. Perto do olhar, as palavras são rascunhos.

Basta ver que o amor não entra pela boca, mas, sim, pela retina. Um escritor polonês chegou mesmo a dizer, em um de seus contos, que o amor era listrado, marcado pela visão daquele que atravessou a retina pela primeira vez. Penso que se oftalmos fossem terapeutas, talvez conseguíssemos ir direto ao ponto. Ou melhor, ao risco. Aquele que, imperceptível, marcou nossas pupilas, alterando modos de ver e de dizer. Ou não dizer. Porque olhos também podem emudecer, voltar-se pra dentro e escapar à luz. Podem revolver passados e se perder nestes labirintos de tempo. Neste caso, só outros olhos, munidos de um fio ou funcionando como ponte, podem demovê-los do silêncio da escuridão.

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Mas se os olhos convidam, os cheiros quebram as resistências. Assim como certos gostos, os cheiros vêm do passado e, como tal, de lugares escuros e empoeirados da memória, onde sequer sabemos se existe vida. Sabores e aromas funcionam, assim, como uma espécie de condão - materializam pessoas, encontros, histórias. Onde a vida pôs um ponto, os sabores e os cheiros adicionam vírgulas - oásis de imaginação em um deserto de certezas. Vírgula-miragem, é verdade, já que no momento seguinte a memória já não está lá.

Os cheiros revelam. Comunicam no silêncio como os olhos. Mas são ainda mais rápidos do que eles. Diferente da visão, o olfato acessa subterrâneos que a consciência não vê. Quando os olhos se perdem, são os cheiros que trazem o invisível à superfície. Grenouille descobre muito cedo esta habilidade dos cheiros e por isso o tomam por um vidente, capaz de dizer o futuro das coisas e das pessoas. Mas Grenouille não vê nada. Apenas conversa com os ventos. Deixa que eles tragam as almas dos vivos, as notas que retém suas presenças, mesmo quando já estão mortos.

Não somos diferentes, tentando requentar momentos natimortos e enfrascar suas essências para que o sublime perdure. Como uma espécie de câmara escura, nossos olhos silenciam e se fecham, para que os cheiros, mais impetuosos e imprudentes, eternizem trechos arranhados da nossa história. Antes que se percam na escuridão morna do esquecimento. Os cheiros trazem os nossos fantasmas para a sala de visitas. Depois de um tempo, eles, os fantasmas, se cansam e vão. Ficamos sós, em trânsito, entre a vigílio e o sono. Entre o mundo dos vivos e o reino dos mortos.

Grenouille acredita inocentemente poder fixar cheiros e congelar sensações, adormecer o tempo e manter em suspensa a experiência estética da beleza e do perfeito. Porque é sabido que a experiência de contato com sublime redime os espíritos mais retráteis. Redime as cicatrizes, o corpo imperfeito, as rugas e feridas internas que o corpo engoliu. De modo que o contato com o sublime expõe gengivas, vísceras - o melhor e o pior de cada um de nós, perdidos e assustados diante do miraculoso.

E o miraculoso na vida-nossa-de-cada-dia é o amor. Convite irrecusável que tira o chão dos pés . Que promete o céu e o inferno juntos. Por isso, Robert, em Os Cinco Sentidos, procura um a um de seus ex-amantes pra sentir-lhes o cheiro, na expectativa de saber se algum deles alguma vez o amou. Por isso, Rona, a confeiteira, escapa enquanto pode da experiência dos sabores. Sabe que em algum momento vai amargar o gosto da decepção. E amarga. Não porque o desencontro estivesse em seu caminho. Mas porque ele crescia debaixo da sua pele.

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E com a pele voltamos ao início da conversa, quando o anti-herói Grenouille inicia sua aventura em direção ao enigmático e estranho cheiro das coisas e das pessoas. Terrier pressente que Grenouille vê com as narinas. De minha parte, arriscaria dizer que as pessoas vêem com o tato. E que nada devassa mais um indivíduo do que o contato nervoso dos dedos.

Se estivesse no lugar de Terrier, não teria medo daquele que pode me ver com o nariz. Mas com certeza daquele que pudesse ler, nos códigos cifrados do meu corpo, as tristezas, os desencontros, os medos encapsulados. Não é preciso ver. As feridas - de corpo e de alma - brotam na superfície como escritas em braille.

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