sexta-feira, 4 de abril de 2008


“Não entendo nada, falar consigo é o mesmo que ter caído num labirinto sem portas, Ora aí está uma excelente definição da vida, Você não é a vida, Sou muito menos complicada que ela."

Saramago. As Intermitências da Morte.

terça-feira, 1 de abril de 2008


Por quanto tempo pode-se esperar um amor?
Qual o prazo de validade de uma lembrança, de um olhar, de um punhado de palavras?
Haverá cerca capaz de proteger afetos e conservá-los ao alcance dos olhos?

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Vi ontem "O Amor nos tempos do cólera". Já tinha esquecido como eu gosto de Gabriel García Márquez. Em meio ao irreal e ao fantástico, García Márquez consegue introduzir sentimentos quase concretos de tão pungentes.

Suas metáforas são de tal modo poderosas que ficam martelando na cabeça anos a fio. Como o saco de ossos carregado pra cima e pra baixo por Rebeca em Cem Anos de Solidão. Como o amor dolorido e paciente de Florentino Ariza, em O Amor nos Tempos do Cólera.

"Florentino Ariza não deixara de pensar nela um único instante desde que Fermina Daza o rechaçou sem apelação depois de uns amores contrariados, e haviam transcorrido desde então cinqüenta e um anos, nove meses e quatro dias. Não tivera que manter a conta do esquecimento fazendo uma risca diária nas paredes de um calabouço, porque não se havia passado um dia sem que acontecesse alguma coisa que o fizesse lembrar-se dela”.

O medo nosso de cada dia


"Bizarro, embora muito comum e familiar a todos nós, é o alívio que sentimos, assim como o súbito influxo de energia e coragem, quando, após um longo período de desconforto, ansiedade, premonições sombrias, dias cheios de apreensão e noites sem sono, finalmente confrontamos o perigo real: uma ameaça que podemos ver e tocar".

Bauman, Zygmunt. Medo Líquido, p. 7

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O medo vem das vísceras. Contrai músculos e alma e nos torna pequenos e anônimos. O medo grita - nos olhos, na pele, no corpo. Por isso inaugura o humano. Constrói para nós uma segunda carne e nos põe a perambular seminus pelo mundo.

Era uma vez o Medo e ele se fez respiração entre nós.

Narrando em voz alta nossas histórias, não seria equivocado dizer que o medo faz arqueologia com as nossas vidas. Recolhe evidências esquecidas nos subterrâneos e traz à luz sentidos já secularmente enterrados. O medo abusa. Pega o passado pela mão e faz com que caminhe sem cerimônia pelo corpo. Amplifica o som desse corpo que vocifera seus primórdios, quando ainda era plasma e cartilagem. Porque tudo foi registrado e ao medo nada escapou no seu banco inesgotável de memórias.

No corpo que é desde sempre território alheio, o passado circula, pulsa, se enquista e finalmente adormece. Mas o medo sempre desaprova o silêncio. Acorda o passado aos solavancos e traz à superfície aquilo que tínhamos engessado entre as paredes do esquecimento.

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Se o medo nos imobiliza e reduz, somos quase gratos quando ele expõe nossos machucados impronunciáveis. Bordas não-tratadas de feridas logínquas.

Estranha sensação esta - a de alívio pelo presságio que, enfim, mostra seu rosto. Se a dor é imensa quando o mal se revela, maior ainda é o pavor que vem da dúvida, da ausência de carne que imaterializa o mal que nos assombra.

Quando os fantasmas tomam corpo e se sentam à mesa, sabemos que é hora de rivalizar com o medo e pegar o passado pela mão. Hora de derrubar paredes, tornar líquido o cimento que aprisiona as memórias do corpo e deixar o passado, enfim, volatizar-se, ao modo dos bons perfumes.