sexta-feira, 14 de março de 2008

Em busca do cheiro perdido



Na obra "Em Busca do Tempo Perdido", Proust nos mostra uma terrível realidade: o passado, ainda que sabores logínquos o tragam de volta, não permanece no palato por muito tempo. Desembaraça-se da língua como palavra que já foi. Lembrança despetalada da memória a fertilizar outro chão. O do inconsciente.

Mas se o gosto nos dá a esperança ingênua de que vamos reter a experiência cuja lembrança nos amolece de amor, é para, no minuto seguinte, descobrir que ele não mais está lá. Foi perdendo os sentidos, em suspiros inaudíveis. Foi deixando a língua, o corpo, a memória. Saiu pela porta dos fundos.

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Pior do que o gosto, que um dia abandona a língua sem que ela dê por conta disso, são os cheiros. Um aroma chega - e bem mais rápido - onde o gosto não alcança. Prende a memória como um marcador de livro. Porque chega mais rápido e não se deixa deter, o cheiro desarma. Se espalha. Atravessa as vísceras da memória. Volátil, nunca sabemos onde se esconde. Até que um dia, sorrateiro como um gato, volta pela porta da frente, como se nunca tivesse ido.

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Vendo o filme sobre o perfumista Grenouille, que matava suas vítimas para extrair delas o aroma da beleza, sigo as pistas deixadas no ar. Grenouille nasce no meio do lixo e da putrefação da matéria. Nasce com a fantástica capacidade de reter cheiros. No seu primeiro encontro com a beleza, não consegue suportá-la e, sem entender, mata. Desde então traz para si a missão de nunca mais perder um aroma - de reter o que é, por sua natureza, efêmero. Noite e dia, tenta produzir com restos humanos, em uma alquimia macabra, o elixir da beleza e da perfeição. Mas Grenoille se engana na sua ingênua crueldade. A beleza pode ser reproduzida, mas não a experiência que torna o um, único. A beleza pode ser retida. O amor que se sente ou provoca, não.

A experiência dos primeiros afetos - e dos primeiros cheiros - orienta boa parte das buscas humanas. Não é à toa que Grenouille volta à cloaca imunda de onde saiu e é nela que dá seu último suspiro. Desta vez untado com o cheiro que nunca teve. Embebido em perfume - o cheiro enfeitiçador da beleza pura - Grenouille é devorado por homens e mulheres que passam.

"O perfume" é um filme forte. Requer estômago pra ver. Porque Grenouille somos nós. Nós que adoecemos de melancolia. Nós que enlouquecemos em busca do aroma perdido. Do cheiro original que nos liga, como um cordão, às primeiras respirações. Nós que perseguimos o amor, gota a gota, para vê-lo ir-se pelos ares como algo que jamais poderia ser retido.

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