sábado, 31 de maio de 2008

Entre hiatos de significado e a aposta na Terra Prometida


"E foi sobre estes bancos de solo ainda mal consolidados, mistura incerta de terra e água, que se apressaram a proliferar os mangues - esta estranha vegetação capaz de viver dentro de água salgada, numa terra frouxa, constantemente alagada. Agarrando-se com unhas e dentes a este solo para sobreviver, através de um sistema de raízes que são como garras fincadas profundamente no lodo e amparando-se, umas nas outras, para resistirem ao ímpeto das correntezas da maré e ao sopro dos ventos alíseos, que arrepiam sua cabeleira verde, os mangues foram pouco a pouco entrelaçando sua raízes e seus braços numa amorosa promiscuidade, e foram assim consolidando a sua vida e a vida do solo frouxo das coroas de lodo donde brotaram (...)

Os mangues vieram com os rios e, com os materiais por esses trazidos, foram os mangues laboriosamente construindo seu próprio solo, batendo-se em luta constante contra o mar. Vieram como se fossem tropas de ocupação e, em contato com o mar, edificaram silenciosamente e progressivamente esta imensa baixada aluvional hoje cortada por inúmeros braços de água dos rios e densamente povoada de homens e caranguejos (...)

Tendo os mangues realizado esta obra ciclópica, não admira que, hoje, sejam eles divinizados pelos habitantes desta área, embora não saibam os homens explicar como o mangue realiza este milagre de criar terra como se fosse um deus (...)"


Castro, Josué. A descoberta da Fome

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As palavras de Josué fazem eco nos meus ouvidos... e eu penso sobre o sentido desta "estranha vegetação capaz de viver em terrra frouxa". Que habilidade proto-humana será essa, a de ser pra sempre interstício, suportando hiatos de significado, em busca da terra prometida?

Como será manter as garras fincadas no lodo, na certeza de que um dia a terra será firme e farta? Fato é que "em luta contra o mar"- evidência quase injusta do belo -, o mangue fétido e repulsivo confia que seu dia chega. Sobrevive aos ventos e à correnteza. Ondula com o movimento num mimetismo inteligente - e se mantém firme. No seu silêncio, o mangue se espraia pelos espaços mais isolados.

Confia que ali haverá terra. Basta aguardar. Estendendo seus improváveis e estranhos braços, o mangue acolhe. Abraça silenciosa e permanentemente. Até que a terra se deixa ficar. Primeiro confusa e frouxa. Depois confiante e desejosa do contato com estes dedos verdes e protetores. Feios e macios.

O mangue pede outros sentidos. Os olhos são cegos para entender. A terra, cansada de resistir, adormece para poder receber tais carícias. E o mangue, fértil de um jeito que só os dedos - e não olhos - podem saber, impregna a terra incerta com suas sementes verdes. Até que mais areia umedecida saia da boca deste braço esquecido de mar.

1 comentário:

Unknown disse...

Fantástico!! Nunca paramos para pensar na importância do mangue.
Sua luta constante contra o mar e a sua verdadeira função.
Parabéns!
Adorei!