quinta-feira, 8 de maio de 2008

Ao vencedor, os mirtilos



Mirtilo. Fruto exótico e pouco comum. Talvez por isso sobre na vitrine de tortas do bar de Jeremy, em Nova York. Toda diferença corre esse risc0: não agradar ao paladar e ser esquecida num canto, como se nunca tivesse existido.

Metáforas não faltam no novo filme de Wong Kar-Wai - My blueberry nights. E a sutileza e profundidade de algumas delas se comunicam com histórias que calamos ao longo da vida. Vale a pena comentar duas. As chaves amontoadas e a sempre ignorada torta de mirtilo.

O bar de Jeremy funciona como um curioso depósito de histórias de amor e ruptura, espaço sonoro e visual onde a alegria barulhenta dos encontros se mistura com o luto nem sempre silencioso dos casais que se separam. Espécie de linha divisória, o bar de Jeremy cela uma paz sempre ameaçada. Sentimentos contraditórios repousam nesta frágil linha de armistício que separa o desespero da aceitação. Claro que ambos, num cotovelo do caminho - como diria Graciliano Ramos - se confundem. Metáfora dos corações humanos, o bar de Blueberry Nights é um espaço com limites pouco definidos, em que convivem e se misturam promiscuamente lembrança e esquecimento. Insistência e abandono.

Nas mãos de Jeremy ficam chaves múltiplas de casas que ele nunca conheceu, a não ser pelo relato de seus itinerantes clientes - amantes anônimos que ora abandonam, ora são abandonados. Jeremy guarda as chaves, na intenção de não fechar portas que ainda poderiam ser abertas. No aquário em que são amontoadas, um sem-número de portas esquecidas, ainda por fechar.

É como se tomassem vida os personagens da quadrilha de Drummond... E assim "João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém". Para quem pensa que 'ninguém' é o fim da linha, a ruptura desta ciranda macabra, grande engano. 'Ninguém' é a peça fundamental neste circuito dos desencontros humanos. E tem um rosto - o daquele que deixará sobrar, todas as noites, a torta de mirtilo.

Representação dos que são sempre preteridos, a torta de mirtilo cimenta nos estômagos algumas indagações: e se na diferença costumeiramente ignorada estiver o bilhete premiado? E se o amor estiver distante das tortas de chocolate, esprimido entre mirtilos? E se formos nós a torta sempre esquecida? Haverá alguém que, por curiosidade ou pirraça, esteja disposto a deixar de lado os sabores previsíveis?

My blueberry nights é um filme sobre a solidão de quem foi esquecido. Sobre o abandono e a dor do amor que acaba sem deixar pistas, a não ser a incompreensível insistência - ora silenciosa, ora ensurdecedora - dos que ficaram no meio do caminho. Destroçados depois do fim de um amor, os personagens de Blueberry Nights sobrevivem como podem, perturbados pela presença fantasmática de um corpo sempre ausente.

Portas semi-abertas são como cicatrizes invisíveis - sempre torturam apesar da distância e do silêncio. Doem exatamente pq já não sabemos onde o fim começa. Com Jeremy desdobrimos que as chaves da casa - e do coração - podem ser mantidas num canto, sem que isto signifique que a passagem ainda esteja lá quando a oportunidade do encontro acontece. Quando o tempo é outro, o comum é que a porta dê em lugar nenhum. A um passo da soleira que separa o passado do presente, um abismo intransponível cresce. O familiar se torna estranho.

Perguntas são inevitáveis. Pq a porta se torna parede? Pq a parede pode brotar, sorrateira e concretamente, por detrás de cada porta aparente? Mais ainda, porque certas portas são estéreis e sempre fabricam paredes em vez de saídas?

Tortas e chaves são vasos comunicantes. Como Jeremy conta à Lizzie, algumas tortas são logo escolhidas e se acabam sem deixar rastro. Outras sobram pouco - um ou outro pedaço destinado aos famintos de plantão. Mas há as que são jogadas no lixo inteiras, dia após dia relegadas ao esquecimento. Pq os mirtilos sobram? Talvez pq sejam exóticos demais à primeira vista. Talvez pq sejam demasiado estranhos ao paladar. De todo modo, comunicam a solidão da Diferença - diferença que, sempre solitária, se põe a falar com espelhos.

Mas Jeremy insiste. Por isso expõe sua torta de mirtilo todas as noites à espera de um visitante curioso e nada trivial. No cotovelo do caminho, ele aposta que alguém ainda há de escolhê-la.

2 comentários:

Sergio Celane disse...

Não vi o filme. Mas, o que é pior, entendi o enredo. Metáforas são perigosas armadilhas sempre. Quando nos arrebatam quase sempre nos causam efeitos colaterais. Culpa de nossas almas que, volta e meia, precisam de remédios. Meu "remédio" de vencedor continua sendo uma fatia de torta da Lecadô. Um dia comerei mirtilos dispostos graciosamente sobre um cheesecake. O mais importante não vai ser a torta mas o lugar onde ela estará à venda. Tão saborosa como o chantilly que provei outro dia no café do La Mole. Tinha gosto de quero mais...

Anónimo disse...

Luciane, adorei o filme!! E aqui você conseguiu fazer um relato da essencia do filme.
ADOREI!!
Beijos
Giorgia