domingo, 18 de janeiro de 2009

Palavras líquidas


Um olhar.
E tudo dito na escassez de palavras.

Palavras como peixes que se afogam no ar
A água pra sempre longe do seu alcance.

Feito folhas mortas, as palavras já não servem.
Desmancham-se a um passo do sentido
Só que não se pode abortá-las.

Pontiagudas como lascas de maçã,
Arranham a garganta. Não descem.
Vomitá-las também já não é possível.

Astutas, porém
Liquefazem-se nos olhos
retirando o verniz cotidiano das retinas.

Lavam impressões

Sinuosas e ágeis como serpentes
As palavras líquidas removem vestígios
O amor já não é listrado

Os indícios da memória apagam-se como fantasmas ao sol
Cinzas de papel de arroz
O corpo transborda em confissões líquidas
na tentativa de tudo dizer ao olho silente que espreita

***

Palavras escorrem
Desafiando a gravidade das certezas
Desfazem traços, lavam restos,
Sulcam novos cursos d´água entre as marcas do tempo

O verbo líquido abre um mar
e, por ele, erguem-se novas travessias

quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Pequena caixa de Pandora


Na soleira da porta
Largo um sem-número de indagações

Como chinelos velhos
Deixo que sejam esquecidos ao relento
Até perderem a forma que assusta

Num canto qualquer, as interrogações parecem quase inofensivas

***

É Noite de Ano Novo
Alaridos na rua, um cão que late longe
Como o saco de perguntas, este som também logo será engolido

As dúvidas murcham como pipocas frias
Que as crianças atiram umas às outras
enquanto suam o tempo nos pés velozes

As dúvidas perdem força
À semelhança de pequenos duendes
Engessados da cabeça aos pés
Inofensivos adornos de Natal, suspensos na árvore fora de época

***

Meia-noite.
Hora de passar pela soleira outra vez.
As visitas reúnem coisas, sapatos, presentes
E somem na noite

Os meus que fiquem ao relento!
Nada de tirá-los do lugar
Até que as dúvidas se dissolvam
como velhos papéis esquecidos

Sigo descalça. Nua.
Nem uma placenta para acomodar o corpo que nasce.
Meus pés não são de gesso.

Do outro lado da calçada,
Pequenos duendes atados com fios invisíveis.
Pelo menos até o próximo ano.
Até o próximo dilúvio na caixa de Pandora.

domingo, 12 de outubro de 2008

Entre pedras e balões


Como corrente de água que sabe por onde passa
deslizo por pedras pontiagudas

Minha pele é anfíbia
Não tenho medo dos atritos
O que me torturam são as dores logínquas
Que ainda expõem minhas vísceras ao teu silêncio

Este sim, assustador
Não por ele, que sei fluido.
Mas pela minha inabalável espera
Como se grandes pedras pudessem ser removidas
devolvendo a vida a cadáveres putrefatos

Trago teu rosto na mão
Como se fosse um balão de gás
Recuso-me a soltar a linha
Que o lançaria pelos ares

Feito um bólide
Feito um bólide

Ainda não consigo
Esvaziá-lo de vida
Espremê-lo com as minhas mãos
Como uvas descartadas

II

As pedras parecem oportunas
Preciso delas antes de soltar a linha
Para desfazer traços, apagar olhos
fazer da boca não mais que um risco pouco claro

Mais que necessárias, as pedras são urgentes
Para arrancar marcas tatuadas com cores vivas
E retirar o que meu olfato ainda captura
há quilômetros de distância,
onde os olhos sequer alcançam

As pedras entoam uma macabra canção de ninar
É preciso destruir o som do seu riso
Moer os dentes que insistem num sorriso
Sempre que o sono vem e meus sentidos vacilam

É preciso desfazer qualquer palavra
que ainda possa me pôr à espera

III

As pedras prometem escrever no meu corpo outra história
Quase celebro suas deformações
E agradeço os rasgos lancinantes
nesta pele anfíbia e cansada
Colonizada até os ossos

As pedras são quase doces
Quando prometem eliminar vestígios
que teu silêncio ainda propõe
Não espero mais pelo correio ou pelo tilintar do telefone
Só quero alfinetes para estourar a bolsa-balão

Para que sumas pelos ares
Ou escorras pelas pernas

Inspiro, expiro
E sinto este descolamento de mim
Como uma mecânica respiração

Sobre os ritos, a necessidade de morrer e a urgência de deixar passar


Os ritos são necessários.
Para celebrar as coisas que nascem.
Para chorar as que morrem.

Os ritos nunca deveriam ser abandonados
antes da sua conclusão. Vingam-se no corpo,
nele escrevendo toda a história do não-esquecido.

Quem queira entender a dor de uma alma,
que se debruce sobre as evidências do corpo que a abriga.
Lá estão as marcas ancestrais da palavra engolida.

A palavra nova anda em círculos;
só a não-palavra chega onde o terreno é desértico.

Se há uma solidariedade possível, é a do tato
a mais forte e humana das sensações.

Solidariedade que investe em desfazer, com dedos de Penélope,
os pressentimentos acumulados
em um corpo que o tempo colonizou.